Por José Francisco Alves
Doutor em História da Arte, especialista em patrimônio cultural
Catedrais do patrimônio cultural sob o fogo têm chocado a quase todos. Está virando frequente. Ainda em nossa memória consta viva a destruição do Museu Nacional, ocorrida há sete meses. E ainda presente para alguns porto-alegrenses estão as chamas que consumiram, em 6 de julho de 2013, parte considerável do Mercado Público – o mais importante patrimônio tombado da capital gaúcha. Enquanto o Museu Nacional desapareceu completamente (prédio, acervo), o nosso amado Mercado com suas bases de meados do século 19 sobreviveu bem ao incêndio: a parte afetada foi restaurada com recursos do extinto Ministério da Cultura, e, finalmente, neste mês alcançou a liberação da área atingida.
Agora foi Notre-Dame. A icônica nave medieval de pedra ardeu em Paris. Claro, o que vimos queimar nas cenas chocantes foi o intrincado madeirame de seu telhado, quase uma floresta inteira de carvalho e castanheira de 850 anos de idade. O fogo consumiu principalmente a cobertura de folhas de chumbo e a estreita e pontiaguda torre, a flecha (ou agulha). Esse incêndio na sede da Arquidiocese parisiense ocupa os noticiários e as sensibilidades do mundo inteiro desde a última segunda-feira. A história e as características desse monumento da humanidade têm sido amplamente difundidas, portanto, mais dados aqui seriam redundantes.
Mas, para resumir, Notre-Dame foi erguida sobre a primeira igreja cristã de Paris, Saint-Etienne (esta, por sua vez, construída sobre templos pagãos). A Catedral foi dedicada à Virgem Maria e a sua construção se iniciou no ano de 1163, tida como concluída em 1345, ou seja, 155 anos antes da chegada de Cabral ao Brasil. No século 19, o templo foi restaurado (recomposto em estruturas danificadas pelo tempo) e teve o projeto original transformado com acréscimos significativos, a exemplo da mencionada flecha, estátuas em bronze de santos e apóstolos, bem como novos gárgulas de pedra, intervenções estas sob projeto do arquiteto Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc (1814–1879), com participação de Jean Baptiste Lassus.
Considera-se que essa Catedral é o ponto turístico mais visitado da França. É uma comparação injusta, mas, enquanto Notre-Dame recebe de 13 milhões a 15 milhões de turistas anualmente (as estimativas oficiais e informais variam muito), o Brasil todo sonha em alcançar 7 milhões por ano. Bens simbólicos encerram em si uma potência tremenda, que vai além das paredes de pedra. Mas soma-se ao caso o imenso orgulho que os franceses têm de seu patrimônio cultural material e imaterial, ou seja, com a sua Cultura. Quem conhece um pouco a França e os franceses sabe que esse orgulho difere substancialmente de certos patriotismos dominantes.
Ao vermos a reação da sociedade francesa, em especial a disputa de bilionários por quem dará mais dinheiro para o restauro, bateu a lembrança de como foi a comoção de nossa elite endinheirada quando da tragédia cultural do Museu Nacional. Ou seja, nenhuma. Nada.
JOSÉ FRANCISCO ALVES
Especialista em patrimônio cultural
E foi a Cultura que parou o fogo de Notre-Dame; mais especificamente, o Gótico.
O Gótico foi uma época da cultura ocidental na Idade Média. A partir dos templos católicos franceses, na arquitetura e na arte o Gótico produziu o seu estilo inconfundível. Suas catedrais foram projetadas com o objetivo de alcançar a Deus, mas de forma a mostrar que Ele está bastante acima dos fiéis. Como intermédio entre ambos, a Igreja Católica. As invenções estruturais dos templos góticos para dar forma e sustentação à grande altura dos edifícios mostraram nesse incêndio a sua tremenda consistência. A maioria das abóbadas, feitas de blocos de pedra (suportadas pelos icônicos contrafortes e arcobotantes), conseguiu aguentar o seu próprio peso, o imenso poder do calor, as toneladas de chumbo derretido e as toras incandescentes. Salvou-se, assim, um significativo acervo artístico e religioso do interior da Catedral. Algo que, vendo as imagens do incêndio, parecia impossível de acontecer.
E quem irá recuperar Notre-Dame será o orgulho francês, com muito dinheiro privado e público. É quase um masoquismo nosso, mas, ao vermos a reação da sociedade francesa, em especial a disputa de bilionários por quem dará mais dinheiro para o restauro (segundo o Le Monde, até uma bilionária brasileira já teria oferecido milhões de euros), bateu a lembrança de como foi a comoção de nossa elite endinheirada quando da tragédia cultural do Museu Nacional. Ou seja, nenhuma. Nada. Dinheiro algum dessa gente.
Como algo de nosso inconsciente, àquela altura nem sequer esperamos algo a respeito, pois “de onde menos se espera, é que não virá nada mesmo”. As cobranças, só ao governo. Ao incêndio cultural permanente do Brasil, portanto, nos falta um Gótico.