Especialistas de diferentes áreas, como o ambientalismo e a economia, coincidem em um diagnóstico capaz de quantificar o retrocesso provocado pelas ideias conservadoras do presidente americano, Donald Trump, que há uma semana anunciou a retirada americana do Acordo de Paris sobre aquecimento global. A estimativa da volta no tempo é estabelecida em exatos dois séculos.
– Manter o uso dos combustíveis fósseis é antieconômico e faz o mundo voltar à revolução industrial, algo como dois séculos. Essas tecnologias estão acabadas. É desolador – diz a geógrafa e ambientalista Káthia Monteiro, presidente do Instituto Augusto Carneiro, que define Trump como empresário de mentalidade antiga, que estabelece seus projetos a curto prazo, sem visão socioambiental.
Ao estimar o tempo para o qual as ideias de Trump conduzem a humanidade, Kathia diz que elas voltam para o início do século 19 também em questões relacionadas aos direitos das mulheres e dos imigrantes.
– Nada disso volta, é claro. Mas me preocupa que outros países sigam esse pensamento – afirma Káthia
Leia mais
Trump anuncia saída dos EUA do Acordo de Paris
Trump recorre à Suprema Corte para derrubar suspensão de decreto migratório
Putin diz não haver "nada concreto" em acusações sobre ingerência nos EUA
Para explicar o impacto do aumento da temperatura ambiental em 1ºC, ela invoca o exemplo do corpo humano:
– Seria como uma pessoa ter a temperatura elevada de 36,5ºC para 37,5ºC. Já é febre.
A Revolução Industrial, que se expandiu do Reino Unido ao resto da Europa e aos EUA, foi a transição para novos processos de manufatura entre 1760 e 1840. Produções artesanais deram lugar às de máquinas, fabricação de novos produtos químicos, elaboração de ferro e uso crescente do carvão.
Diretora executiva do Greenpeace Internacional, Jennifer Morgan alerta:
– Os EUA são um dos maiores emissores de carbono do mundo. Os recentes atos de Trump de reverter o esforço nacional sobre o clima com uma retirada do Acordo de Paris tornarão mais difícil manter a temperatura sob o limite crítico de 1,5 ºC de aquecimento.
Jennifer ressalva que "200 países, que representam 87% das emissões globais, continuam comprometidos com o Acordo de Paris", que "sinaliza o fim da era dos combustíveis fósseis".
O coordenador de Políticas Publicas do Greenpeace, Marcio Astrini, complementa:
– Ao sair do Acordo de Paris, Trump age em nome do passado e briga com o futuro. Volta dois séculos, para algo que o mundo quer superar. A questão do aquecimento global não é política, mas sim humanitária.
Negação de conceitos consagrados na economia
Na economia, há uma grande coincidência causada pela gestão Donald Trump. Foi em 1817, há 200 anos, que o britânico David Ricardo elaborou a teoria que tornaria seu livro Princípios de Economia Política e Tributação um clássico essencial: a das vantagens comparativas. Ricardo ergueu os pilares do que conhecemos como o comércio internacional. Sustenta a obra que diferentes países podem se beneficiar mutuamente do comércio e que é importante a especialização nos
bens e serviços em que tenham mais eficiência. Coincidentemente, os EUA, ícone do liberalismo econômico, deram posse, em janeiro, a Trump, presidente refratário à abertura de fronteiras para a economia e as pessoas.
Diz o economista Edmar Bacha, diretor Instituto de Estudos de Política Econômica Casa das Garças:
– Desde David Ricardo, sabemos que um país se beneficia ao integrar-se à economia internacional.
Mesmo relativizando a ideia diante dos avanços tecnológicos, Bacha recorda que "a teoria do comércio exterior, antes de David Ricardo (1772-1823), era a de Adam Smith (1723-1790), para quem, sem levar em conta as vocações, os países deviam exportar o que sobrava após satisfeita a demanda interna".
Em outros termos, há um retrocesso. Ricardo é um dos pioneiros da macroeconomia moderna. Seus seguidores vão de economistas neoclássicos a marxistas. Ou seja, é uma referência essencial.
Professor da UFRGS, o economista Marcelo Portugal concorda:
– A maior economia do mundo resolveu ir contra uma teoria econômica de 200 anos aceita por qualquer pessoa que some dois mais dois e chegue a quatro – diz Portugal.
E acrescenta:
– O que aumenta o bem-estar dos consumidores de um país é poder comprar bens e serviços que são produzidos fora de suas fronteiras de forma mais eficiente, mais baratos e de melhor qualidade.
Temores também no aspecto migratório
Os economistas Pedro Raffy Vartanian e Hugo de Souza Garbe, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, interpretam que a retaliação ao comércio internacional é fruto de "narrativa econômica individualista e fechada, que vai na contramão dos princípios modernos de relações comerciais bilaterais, multilaterais ou em bloco".
Fernando Ferrari, professor de Economia da UFRGS, ressalva que a teoria de Ricardo foi um avanço grande há 200 anos, mas o processo de industrialização levou a um protecionismo e tornou a situação mais complexa. Dois séculos atrás, a economia era lastreada pelas riquezas naturais.
De qualquer forma, ele critica:
– A política protecionista de Trump é intempestiva e inadequada. É uma ideia fora de lugar.
A respeito das questões econômicas e também ambientais, Karin Wapechowski, responsável pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) no Estado, diz que provocaram forte fluxo migratório no século 19. A revolução industrial gerou urbanização e mudanças socioeconômicas e demográficas. Havia falta de racionalidade. Fumaça era sinômino de progresso.
– O pensamento do presidente americano é um retrocesso para todos os direitos humanos, que são atingidos por diversas variáveis. O mundo de dois séculos atrás não estava preparado ainda para o fluxo migratório que se iniciava fortemente ali – afirma ela.
A população mundial cresceu aceleradamente nos séculos 19 e 20, provocando migrações intensas desde 1800. Karin teme a volta de desequilíbrios e tragédias humanitárias.