A chegada do republicano Donald Trump à Casa Branca enche o mundo de dúvidas. O discurso protecionista que adotou durante a campanha parece que será mesmo colocado em prática, indicam os primeiros pronunciamentos e medidas anunciados pelo megaempresário após a posse, na sexta-feira passada. Embora o país não apareça como alvo direto de Trump, suas intenções têm o potencial de trazer reflexos para o Brasil. Sob diferentes perspectivas, quatro observadores com larga experiência na área econômica e diplomática avaliam o que se pode esperar do novo presidente dos Estados Unidos, segundo principal parceiro comercial do país, em relação a cinco pontos.
Leia mais:
Trump assina retirada dos EUA do Acordo Transpacífico
Marta Sfredo: Trump implode um novo padrão de globalização
Após posse de Trump, Casa Branca tira do ar site em espanhol
1 - IMPACTOS DIRETOS PARA O BRASIL
Luiz Gonzaga Beluzzo, economista e professor aposentado da Unicamp:
"Por debaixo dessa retórica um pouco agressiva, anti-imigração, anti-muçulmanos, típica de uma direita extremada, há o apoio de parte da população americana que sofreu os efeitos da globalização como ela se deu. Os chineses foram os grandes beneficiários da globalização por causa das políticas que adotaram. Isso teve impacto para as regiões mais industrializadas, que perderam muito para China, para a migração (de investimentos) para o México. Faz parte do processo de concorrência desencadeado pela globalização.
O recado principal que Trump deu é apontar para uma mudança na política americana que vai afetar o resto do mundo. O maior risco é com a China, mas também com a Europa, especialmente com a Alemanha. Com o Brasil, secundariamente. Tirando o México, a América Latina não faz parte do repertório de problemas que ele elencou.
O Brasil pode sofrer efeitos de uma política fiscal mais expansionista, que por um lado pode ser positivo pelo crescimento da demanda americana. Ele promete um programa de investimentos em infraestrutura da ordem de US$ 1 trilhão. O aumento da demanda por bens e serviços pode favorecer parcialmente a economia brasileira. Mas, pelo lado financeiro, teremos de esperar para ver a reação dos mercados. O maior gasto vai promover o aumento do juro nos EUA. Isso impacta o câmbio aqui e pode prejudicar a trajetória de queda da a taxa de juros no Brasil."
José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB):
"Aparentemente, não teremos impactos diretos. Isso porque temos déficit com os Estados Unidos. Se tivéssemos superávit, eles teriam interesse em reverter a situação, que é o que acontece com a China, que tem grande superávit com os EUA. O Brasil é muito pequeno no comércio com os EUA. Nossa participação não chama a atenção.
Indiretamente, sim, de diferentes formas. Teoricamente, se os EUA elevarem os juros teria uma desvalorização da moeda brasileira. Isso estimularia as exportações para lá. Mas creio que essa elevação do juro já está precificada no câmbio. E, mesmo que o dólar suba um pouco, não será suficiente para deixar os produtos exportáveis competitivos. Por outro lado, Trump não pode valorizar o dólar, porque isso torna a exportação americana mais cara e, a importação, mais barata. Que é o contrário do que ele quer fazer hoje."
Luiz Felipe Seixas Corrêa, embaixador e ex-cônsul do Brasil e Nova York:
"Administrações republicanas são mais favoráveis à abertura comercial e, portanto, teremos mais facilidade, em tese, para resolver problemas de acesso ao mercado nos EUA do que com os democratas, que são mais ligados a sindicatos. Os EUA acabam de indicar – e Trump aparentemente concordou – um diplomata novo como embaixador no Brasil. Indicado por Obama, mantido por Trump.
A impressão que tenho é de que não vai haver maior mudança. Mas, como a administração Trump está muito voltada para o tema de proteção dos mercados, pode ser que encontremos algum problema. Mas não há indicação concreta de que isso vá ocorrer. O que ele indicou mais precisamente é uma questão com o livre comércio com o México. Mas isso são arrufos iniciais. De qualquer forma, o Brasil está de fora do binóculo dele. Mas sabemos que o Itamaraty está se preparando com ideias para tomar algumas inciativas a respeito disso."
Marcos Troyjo, diretor do BRICLab da Univeridade Columbia (EUA):
"Não creio que haverá mudanças significativas. O Brasil e, a bem da verdade, a América Latina não figuram nas prioridades da diplomacia americana. Isso é verdade com Trump e também assim seria com Hillary. Esta, contudo, caso fosse eleita, sinalizaria ao menos a possibilidade de uma nova iniciativa para as Américas. Foi o que ela aventou numa palestra que realizou há três anos num congresso privado do Banco Itaú, em Nova York, em 2013 – e que vazou pela imprensa via Wikileaks. Talvez ali estivesse a verdadeira Hillary.
Não entendo tampouco que Trump tenha uma "política hemisférica". Durante a campanha, o máximo que vocalizou foi a conhecida crítica a mexicanos, ao Nafta e ao Tratado Transpacífico, de que são signatários latino-americanos como Peru, Chile e o próprio México. Também não vejo atividades conjuntas de maior expressão em fóruns como ONU, OEA ou OMC. Tudo o que se fizer terá de ser construído de bases muito iniciais e rudimentares. É uma pena, pois a atual tendência é a de que EUA e Brasil, as duas maiores democracias do Ocidente e as duas maiores economias das Américas, continuem a relacionar-se abaixo do potencial."
Leia também:
México e Canadá querem aumentar cooperação apesar de ameaça de Trump
Trump e premier de Israel conversaram sobre "ameaças representadas pelo Irã"
INFOGRÁFICO: como Trump vê o mundo
2 - EFEITOS INDIRETOS, A PARTIR DE CONFLITOS COMERCIAIS
Luiz Gonzaga Beluzzo, economista e professor aposentado da Unicamp:
"Há riscos, sim. Trump pode desencadear medidas retaliatórias de desvalorizações competitivas cambiais. Isso seria ruim para a economia mundial. Mas uma guerra comercial pode dar mais importância às relações da China com os países do Brics, não só com o Brasil, mas com a Índia, África do Sul.
Sem dúvida, o Brasil tem grande capacidade de exportar alimentos, carnes, cereais, minerais. A Argentina também, mas menos. Podem ser intensificadas as relações do Brasil com a China. Na Grande Depressão, as grandes relações comerciais foram reordenadas. A Alemanha, por exemplo, fez acordos comerciais pontuais com os vizinhos do leste e com o Brasil, inclusive, para a importação de algodão. Isso certamente vai ocorrer. Não se sabe com que intensidade."
José Augusto de Castro, presidente da AEB:
"Os indiretos são muitos porque o Brasil depende mais de decisões no Exterior do que no mercado interno. Quando Trump resolve dificultar a exportação da China para os EUA, isso automaticamente significa redução de importações de commodities pela China. Essa importação menor afetaria o Brasil, especialmente no caso do petróleo e do minério de ferro. Que são itens que o Brasil vende para a China. A soja é um produto que 80% vai para a China, mas tem outro parâmetro.
Trump até diz coisas contrárias ao que ele quer. Diz que vai dificultar a exportação de soja para a China. Se a China deixar de comprar soja dos EUA e passar a comprar do Brasil, o Brasil não tem capacidade para atender. E, ao mesmo tempo, também por hipótese, se a China passa a comprar mais do Brasil, os preços cairiam porque a bolsa de Chicago tem como parâmetros as vendas para a China. Então, se reduzir a venda para a China, caem os preços. E se for adotada barreira tarifária ou não tarifária contra a China, isso vai fazer com a China se torne mais agressiva em outros mercados, como o Brasil e outros países da América Latina, colocando mercadorias aqui."
Luiz Felipe Seixas Corrêa, embaixador e ex-cônsul do Brasil e Nova York:
"Com a China, não acredito que a coisa vá muito além de um debate ocasional, verbal. A China e os EUA funcionam como se fossem a mesma economia. Os EUA compram a maior parte das exportações chinesas e a China compra a dívida americana. Uma coisa complementa a outra. Se furar essa bolha, pode causar prejuízos aos dois países. Então, pode ser que o bom senso prevaleça.
Com relação à Europa, ele está se arriscando um pouco. O mundo é regido, desde o fim das guerras napoleônicas, pela Inglaterra e, depois, por uma aliança formada por Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. A aliança anglo-saxã, ao longo dos anos, foi se reforçando enormemente. Há alguns dias, quando a (primeira-ministra) Theresa May deu entrevista sobre o Brexit, disse que quer fazer um acordo com o Brasil. Para nós, é um avanço. Estamos há 20 anos tentando fazer um acordo com a União Europeia e não conseguimos. Com a Inglaterra, que não é tão protecionista, bastante menos em matéria agrícola, fica mais fácil.
Marcos Troyjo, diretor do BRICLab da Univeridade Columbia (EUA):
"Se perseverar no discurso que esposou durante a campanha, Trump denunciará o Nafta e rasgará o TTP (o Acordo Transpacífico), além de incitar a contenciosos comerciais contra atuais parceiros como México ou China. Não veria, nesse cenário, qualquer chance para o prosseguimento das tratativas do TTIP (o Acordo com a Europa).
Além disso, minha desconfiança, a julgar pelo que manifestou na ocasião do plebiscito do Brexit, é de que Trump despreza os burocratas de Bruxelas. Com Trump, as relações sino-americanas mergulham na incerteza. De tal escuridão pode resultar, entre outros pesadelos, uma guerra comercial. Mas é também plausível, dada a retórica antiglobalização de Trump, que os Estados Unidos se retirariam geoestrategicamente da Ásia. A China seria assim "abandonada" como principal núcleo de poder na região.
Em temas comerciais, Trump fala grosso com Pequim. Quando o assunto é geopolítica, é mais duro com Tóquio ou Seul. Trump deseja refazer as contas dos gastos de defesa que os Estados Unidos mantêm com Japão e Coreia do Sul – hoje "aliados estratégicos". Eles teriam de pagar pela "proteção" americana. Isso soa como música para Pequim, que deseja estabelecer-se como ator geopolítico inquestionável na Ásia. O isolacionismo de Trump cai como luva para uma China que não dissimula pretensões globais."
3 - A POSIÇÃO DO BRASIL NAS PRIORIDADES DIPLOMÁTICAS DOS EUA
Luiz Gonzaga Beluzzo, economista e professor aposentado da Unicamp:
"Em relação ao México, Trump está preocupado com a migração de empresas americanas para lá e com a imigração de pessoas para os EUA. O Brasil, neste momento, não é um país que está inscrito na estratégia da política externa americana. Nem os demais países da América Latina. Quais estão? A China, outros da Ásia, a Rússia, a Europa. Ele está começando a fazer pronunciamentos que deixaram os europeus um pouco assustados. Tem ainda a questão Israel e Palestina.
Trump também representa o retorno do unilateralismo americano que esteve presente na Primeira Guerra, no período entre guerras e na Segunda Guerra. Os EUA só entraram na Segunda Guerra em 1941, quando a Europa estava praticamente destroçada. Depois, quando saíram desta postura isolacionista, se tornaram um país hegemônico e tiveram um papel importante na recuperação da Europa, com incentivo às economias desses países. Tenho impressão forte de que estamos em um retorno ao isolacionismo. Isso pode ser difícil de ser absorvido pelo mundo."
Luiz Felipe Seixas Corrêa, embaixador e ex-cônsul do Brasil e Nova York:
"Falar de posição em relações internacionais globais é um exercício um pouco estéril. A importância se dá pelo que um e outro podem se ajudar ou prejudicar. Isso é uma prioridade.
O Brasil é um país que não é ameaçado por ninguém. E não ameaça ninguém. Não tem armas nucleares. Tem uma posição no mundo que o coloca na possibilidade de resolver problemas sul-americanos. Mas a ideia do Brasil global é remota, ainda. Nos governos anteriores houve tentativa de promover o Brasil como membro permanente de segurança e isso não funcionou porque o Brasil não tem um peso negativo ou positivo nos grandes problemas mundiais.
O Brasil é um mercado importante para os Estados Unidos pela quantidade de investimentos que têm aqui e pela capacidade de desenvolver comércio, que é bem abaixo do que poderia ser. E se acontecer alguma tragédia, uma emergência, uma reviravolta no continentes sul-americano, o Brasil passa a ser crucial para eles."
Marcos Troyjo, diretor do BRICLab da Univeridade Columbia (EUA):
"A conjuntura nos EUA não convida a maiores aproximações com o Brasil. A não ser que ocorra uma inflexão da linha de política externa apontada por Trump durante a campanha, os EUA estarão muito voltados a si próprios. Isso não é boa notícia para o Brasil, que precisa muito do vigor das exportações para retomar o crescimento econômico. Fica mais difícil utilizar o comércio exterior como trampolim do crescimento do PIB brasileiro se o maior mercado do mundo encontra-se encoberto por uma densa névoa protecionista.
Minha impressão é de que, confirmada a retórica protecionista de Trump, o Brasil terá de depositar ainda mais suas fichas nos destinos asiáticos para suas exportações e buscar agilizar o acordo Mercosul-União Europeia, que já se arrasta há 17 anos."
4 - INVESTIMENTOS AMERICANOS NO BRASIL
Luiz Gonzaga Beluzzo, economista e professor aposentado da Unicamp:
"O Brasil tem uma grande presença de empresas americanas, mas é uma presença para o mercado local. Cada vez menos participam de exportações. Não acho que teremos problemas com investimento americano no Brasil. Talvez marginalmente, mas não na intensidade do México. Isso é mais um sinal de que o Brasil não está no rol de preocupações."
José Augusto de Castro, presidente da AEB:
"Há muitas empresas estrangeiras no Brasil. Se ele proíbe uma empresa americana aqui de exportar para os Estados Unidos, é um tiro no pé. Afinal, o mundo está globalizado, com participação direta dos EUA. Infelizmente, a participação do Brasil no mundo globalizado é muito pequena.
Somos pequenos para chamar a atenção dos EUA. Para os EUA, vão 12% das exportações brasileiras. Mas o Brasil, para as importações americanas, representa muito pouco. Em 2015, o Brasil exportou US$ 24 bilhões para os EUA. Os norte-americanos importaram do mundo US$ 1,505 trilhão. Ou seja, para eles, nossas exportações representam 1,6%. O Trump, nesse contexto, teria muito mais interesse de analisar o México, que está ao lado, que exportou US$ 381 bilhões em 2015 para o mundo. Cerca de 80% desse valor foi para os EUA.
Marcos Troyjo, diretor do BRICLab da Univeridade Columbia (EUA):
"É um caso diferente, pois toda a estratégia brasileira de compras governamentais, oferecimento de benefícios fiscais e tentativa de criação de cadeias de produção do setor industrial esteve associada ao papel das estatais e das instâncias governamentais em seus três níveis. O Estado desempenhou papel de grande formador da demanda para que empresas de outros países viessem ao Brasil e aqui estabelecessem suas operações produtivas, portanto gerando empregos e impostos locais.
O problema é que, na medida em que o Brasil optou por não se esforçar na busca de acordos de comércio, nem se integrar às cadeias globais de produção, as atividades industriais que aqui se instalaram não apenas passaram a competir com os similares nacionais, como também tiveram como objetivo exclusivo o mercado brasileiro. Isso, portanto, não deve ser alterado com as novas orientações da presidência Trump. As empresas americanas não vêm montar uma fábrica no Brasil para fazer do país uma plataforma de exportação para terceiros mercados. O objetivo é focar no mercado brasileiro, que é muito protegido comercialmente."
5 - APROXIMAÇÃO ENTRE OS DOIS PAÍSES
José Augusto de Castro, presidente da AEB:
"Tem que partir do Brasil. Nós é que temos que fazer algo. Os norte-americanos não farão nada para agradar o Brasil, porque não somos prioridade para eles. Hoje fala-se em um acordo comercial com os EUA. Não sabemos se o Trump fará algum acordo comercial. Mas hoje não teríamos condições de fazer acordo em igualdade com eles. Precisaríamos de reformas internas – tributárias, trabalhistas, previdenciárias, etc. – para reduzir custos aqui.
Em 2002, cerca de 25% das nossas exportações eram para os EUA. Perdemos espaço. E precisamos lembrar que eles importam basicamente manufaturados, exatamente o que o Brasil quer. Em commodities somos concorrentes, a não ser no minério. Então, não temos quase nada a oferecer.
Por isso, torcemos para que Trump cancele o TPP (nesta segunda-feira, o presidente americano assinou decreto em que retira o país do acordo), que o Brasil ficou de fora. Assim como torcemos para que o acordo entre EUA e União Europeia não se materialize. Se saírem, as vendas entre estes países não seriam tributadas. Mas as nossas, sim."
Luiz Felipe Seixas Corrêa, embaixador e ex-cônsul do Brasil e Nova York:
"Pelo que sei, o Itamaraty está trabalhando nisso. Mas não tenho acesso às informações concretas e muito menos às reservadas. Mas se eu estivesse lá, teria uma lista (de pontos). Em primeiro lugar, agir com pragmatismo. Trump é uma pessoa imprevisível. Mas não creio que vá colocar na agenda prioritária dele qualquer coisa relacionada ao Brasil. Então, caberá a nós identificar problemas que estamos enfrentando e tomar iniciativas de propor soluções. E estas estarão basicamente no campo comercial, para atrair mais investimento e dar mais segurança aos investimentos.
As prioridades seriam mais de acesso para nossos bens de consumo, industriais, menos restrições às exportações agrícolas brasileiras, ao algodão, a têxteis, etc. Os EUA, que sempre foram nosso primeiro parceiro comercial, hoje são o segundo. Mas o importante é aguardar inciativas que ele (Trump) vai anunciar para o plano externo e analisar isso muito bem.