Marcelo Träsel
Professor de Jornalismo (UFRGS) e integrante da mesa diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
Não gosto do termo "notícias falsas" (fake news), que se popularizou na esteira das descobertas a respeito de usinas de produção de conteúdo loroteiro a respeito de ambos os candidatos à presidência dos EUA, para circulação em redes sociais durante a campanha. Se é falso, não é notícia. Do ponto de vista da teoria do Jornalismo, apenas fatos reais são acontecimentos passíveis de transformação em notícia, que idealmente reflete a verdade, embora na prática possamos apenas nos esforçar para chegar o mais próximo possível da verdade e realizar uma cobertura objetiva. Talvez uma expressão mais exata fosse "conteúdo embusteiro", ou quem sabe "pseudojornalismo".
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Embustes deste gênero constituíram a maior parte das afirmações de Donald Trump e seus assessores desde as primárias republicanas, sobretudo em seu inacreditável perfil na rede social Twitter. Quem acompanhou o candidato nos últimos dois anos percebeu que nenhuma frase dita ou escrita por ele pode ser tomada pelo valor de face. Pela primeira vez na história, organizações jornalísticas promoveram checagem de fatos em tempo real ao longo dos debates entre Trump e Hillary. As mentiras deslavadas do republicano se tornaram uma das principais pautas da cobertura eleitoral.
O bilionário respondeu aos esforços da imprensa com ataques a pessoas físicas e jurídicas, quase sempre na forma de tweets. Ao longo da campanha, mas em especial após a sua vitória, o presidente eleito dos EUA aumentou o volume das críticas e tornou os jornalistas seus principais inimigos. Ninguém pode se dizer surpreso com o fato de que uma de suas primeiras ações como presidente foi mandar seu porta-voz, Sean Spicer, convocar a imprensa para mentir: "Esta foi a maior audiência em uma cerimônia de posse, ponto final." Confrontada por dados como os do metrô de Washington, que verificou 200 mil viagens a mais durante a cerimônia de posse de Obama em 2013, a equipe de Trump defendeu o porta-voz Spicer – ou, no caso, o presidente, pois porta-vozes transmitem os argumentos de seus chefes –, afirmando que ele estaria apenas oferecendo "fatos alternativos".
Não apenas Spicer mentiu, como adotou uma postura agressiva em relação aos repórteres reunidos para a coletiva, os acusando de comportamento vergonhoso por suas "tentativas de reduzir o entusiasmo da posse". Ainda na mesma semana, Trump baixou uma ordem de silêncio sobre agências governamentais, proibindo servidores públicos de dar entrevistas sobre, por exemplo, mudanças climáticas. Ambas as ocorrências se constituem praticamente em declaração de guerra contra as organizações jornalísticas. Americanos nascidos depois de 1970 nunca viram uma Casa Branca tão avessa a repórteres e mesmo Nixon, que renunciou ao posto em 1974, só promoveu um conflito aberto após as denúncias do caso Watergate, não desde o primeiro dia no governo.
O comportamento de Trump promoveu um barata-voa na imprensa. A cobertura objetiva dos acontecimentos políticos se mostrou não apenas insuficiente para esclarecer os fatos ao público, como a equipe do candidato e agora presidente soube usar as convenções do circuito jornalístico de Washington contra os jornalistas. A relação cordial estabelecida entre repórteres e autoridades só funciona enquanto ambas as partes jogarem conforme as regras. Trump chutou o tabuleiro e espalhou as peças por todos os lados.
As organizações jornalísticas americanas são relativamente saudáveis, então podem se manter à tona durante os quatro anos – oito, na pior das hipóteses – que Trump ficará na presidência. O problema principal, para nós habitantes de democracias menos consolidadas, é como os governantes, políticos e oligarcas de nações recém-saídas de regimes autoritários, ou ainda sob seu jugo, usarão o exemplo do homem mais poderoso do mundo para balizar a sua própria relação com a imprensa. Conforme a Unesco, em 2016 mais de cem jornalistas foram assassinados, a maioria durante a cobertura de conflitos armados. Na América Latina, onde não há guerras, foram pelo menos 28 homicídios, muitos por motivação política. O mundo vem se tornando cada vez mais hostil para os jornalistas e os EUA costumavam ser, ao lado da Europa, um modelo a seguir nas relações entre imprensa e poderosos.
Só podemos torcer para que os poderosos no resto do mundo não se mirem no exemplo de Trump.