Não bastassem filas de sete horas sob o sol caribenho para comprar um quilo de farinha em mercados desabastecidos, os venezuelanos se veem em apuros pela retirada de circulação da sua cédula de maior valor. O presidente Nicolás Maduro tentou atenuar o drama: prorrogou até 2 de janeiro a vigência da nota de cem bolívares, preocupado com o risco de uma explosão social no Natal e no Ano-Novo.
Maduro culpa grupos ligados à oposição e aos Estados Unidos pelo atraso na chegada de notas maiores que as substituiriam e disse que os aviões nos quais chegariam sofreram "sabotagem". Depois, para conter a onda de protestos e saques, o presidente venezuelano começou a reabrir as fronteiras com Brasil e Colômbia, que haviam sido fechadas para evitar que supostos especuladores colombianos, tendo a moeda, entrassem no país.
A retirada da nota de cem bolívares (US$ 0,15) foi ordenada por Maduro sob a alegação de que quadrilhas baseadas na Colômbia estocam cédulas para "desestabilizar" a Venezuela – seria uma "guerra econômica" travada por "máfias" ligadas ao "império americano", costuma dizer Maduro.
Embora o presidente tenha anunciado que a saída de circulação das notas coincidiria com a progressiva entrada de cédulas com maior valor, custam a chegar as prometidas notas de 500 a 20 mil bolívares. Maduro atribuiu os saques a "grupos de vândalos" e a deputados da oposição.
– Tenho pouco, mas esse pouco está em notas de cem pesos. É desesperador. Para trocar, terei de levar pilhas de dinheiro, que valem pouco e são muitas cédulas. No comércio, não aceitam as notas. Terei que ir várias vezes a bancos – diz por telefone a ZH um vendedor de 46 anos, pai de dois filhos, de cinco e sete anos, que não quis se identificar.
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O fato é que milhares de venezuelanos estão impedidos de receber salários e viram seu dinheiro virar pó. Faltam alimentos, medicamentos e agora cédulas na Venezuela, que já vive crise socioeconômica com 80% de desabastecimento da cesta básica (remédios e alimentos), mais de 400% de inflação anual, índice de homicídios comparável ao de países em guerra, cerca de cem presos políticos, ruptura institucional e filas para compras que dão voltas nos quarteirões dos mercados.
Medida poderia ser forma de reter inflação e alta do dólar
O economista Antônio Correa de Lacerda diz que a única explicação é a de que o governo realmente tenta tirar o dinheiro das tais máfias. Diz que é comum ocorrer medidas assim em reações contra o tráfico. E pondera que os venezuelanos com isso veem agravada sua situação.
Em seu programa na emissora de TV estatal, o presidente afirmou que há bancos nacionais envolvidos em um boicote e que a "operadora" que dirigiu o plano contra o papel-moeda da Venezuela é uma ONG "contratada pelo Departamento do Tesouro dos EUA". De acordo com Maduro, há depósitos, não só em várias cidades da Colômbia, mas também no Brasil, na Alemanha, na República Checa e na Ucrânia, onde as máfias estariam acumulando as cédulas venezuelanas.
– Mais de 300 bilhões de bolívares estão em poder das máfias dirigidas na Colômbia, como parte do golpe econômico – disse o presidente, acrescentando que, há dois anos, identificou-se "um centro desestabilizador à moeda venezuelana" nas cidades colombianas de Cúcuta e Maicao.
Apesar do discurso de Maduro, os protestos se avolumam, em especial, nas fronteiras com o Brasil e a Colômbia. Há enfrentamentos e foram presas 300 pessoas. O presidente diz que os manifestantes integram partidos de oposição, a quem acusa de serem "mafiosos" e ligados ao "império".
Outras especulações sobre as reais intenções de Maduro dizem que, ao tirar de circulação as notas de cem bolívares, ele procura reter a valorização do dólar. As notas de cem bolívares são 48% do dinheiro em espécie que circula na economia local. Surgiu até uma atividade complexa: o site Dólar Today calcula com quantos bolívares é possível comprar um peso na Colômbia e depois, com esses pesos, quantos dólares podem ser adquiridos.
– A medida de Maduro foi estabelecida de improviso e é errática, sem levar em conta suas consequências – critica o historiador Carlos Malamud, dizendo que o resultado de tudo o que está ocorrendo será sempre atribuído pelo governo a uma conspiração internacional.
E acrescenta, salientando que a prorrogação da validade dos cem bolívares até o dia 2 tem o único motivo de evitar uma grande revolta neste Natal:
– Não estamos apenas frente a um problema de falta de ferramentas metodológicas para enfrentar a realidade, mas também da falta de sensibilidade do governo frente ao sofrimento cotidiano da população. Maduro desencadeia um incêndio social.
O drama de quem ficou sem dinheiro
Se na Colômbia é maior o volume de pessoas que chegam para o Natal com as famílias, no Brasil há dezenas entrando diariamente – a estimativa é de que sejam 200 turistas brasileiros sem dinheiro que precisam retornar e milhares de venezuelanos que pedem refúgio. Brasil e Venezuela compartilham 2,2 mil km de fronteira nos Estados de Amazonas e Roraima. Muitos dramas explodem ali.
Entre as pessoas que atravessam a cidade venezuelana Santa Elena de Uairén até Pacaraquima (Roraima), está um casal porto-alegrense, ambos com 32 anos, que falou com ZH na quinta-feira. Eles decidiram pôr o pé na estrada há cinco meses. Foram à Amazônia e às Ilhas Margarita, na Venezuela, onde se viram com as agora indesejáveis notas de cem bolívares enchendo sacolas. Ficaram sem dinheiro e, acompanhados de uma amiga mineira, entraram no Brasil com a ajuda da Secretaria de Assuntos Internacionais roraimense.
– Temos família em Porto Alegre, e não sabem que estivemos em apuros, não telefonamos. Não queremos assustá-los – diz o homem.
– Como a fronteira ficará fechada até 2 de janeiro, e na Venezuela há turistas sem dinheiro e comida, decidimos buscá-los – diz a secretária roraimense de Assuntos Internacionais, Verônica Caro, que trabalha com uma lista, mas é surpreendida pela chegada de mais gente que o previsto.
Brasileiros têm sido hostilizados em Santa Elena de Uairén. Foi o caso da fisioterapeuta Cirrami Soares, 43 anos, que tem diabetes e hipertensão. Cirrami foi à Venezuela trocar 1,2 milhão de bolívares, que dariam R$ 2 mil. Motivo: comprara os bolívares, mas desistiu de viajar e não tinha como trocá-los no Brasil. Ela estava lá quando as cédulas foram tiradas de circulação. A brasileira ficou sem dinheiro e sem os remédios de que precisa.
– Desconfiam de nós. Não nos dão nem um copo d'água, se precisamos – diz ela, já em casa.