ROSANA PINHEIRO-MACHADO
Antropóloga, professora visitante da Universidade de São Paulo
Ainda não é possível prever se os efeitos da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos serão tão catastróficos para as políticas econômica e externa quanto alguns analistas lamentam. Trump não governará sozinho. Ele tampouco será o primeiro presidente com trajetória singular que se elege no país (como Ronald Reagan, por exemplo). É difícil ter clareza do quanto o seu discurso de ódio e seus clichês apaixonados são uma estratégia eleitoreira para canalizar a raiva da classe trabalhadora branca empobrecida ou se efetivará em prática política. Cabe notar que seu discurso de vitória, proferido no dia 9 de novembro, já mudou completamente o tom da fala, apontando a necessidade de negociação.
Em meio a esse cenário incerto sobre o futuro, contudo, a tragédia simbólica já foi concretizada. A eleição de um misógino – que chama as mulheres de "gordas" –, de um racista xenófobo – que promete a construção de um muro para barrar a imigração do México –, entre tantas outras aberrações ditas durante a campanha, tem profundo impacto negativo na luta por direitos humanos, na luta por dignidade e respeito às diferenças. O peso dessa vitória será sentido por muitos anos.
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Por muito tempo, países desenvolvidos demonstraram uma agenda e um debate muito mais avançado em relação às questões de raça, gênero e sexualidade. Além, é claro, do esforço de ter o multiculturalismo como princípio organizador da sociedade. Se o machismo e o racismo, por exemplo, não desapareceram nos países ricos, ao menos sempre se teve o amparo legal, bem como o conforto de que estes debates eram mais consolidados. A luta por direitos humanos, portanto, ficava mais nas relações interpessoais e nas esferas privadas e microscópicas do cotidiano. Havia uma pequena confiança de que, na esfera pública, alguns direitos estavam conquistados.
Assédio de alunas por parte dos professores nos Estados Unidos é demissão imediata, enquanto que no Brasil absolutamente nada acontece com o assediador. Sexismo e multiculturalismo são discutidos nas escolas britânicas. Tudo já sedimentado, no sentido de que estes temas são tratados como bandeiras "humanas" – e inclusive liberais – e não como "pautas comunistas" de "petralhas". Esse avanço, mesmo que construído a duras penas e imperfeitamente, funcionava como certo norte e esperança para muitas lutas que se espalhavam em sociedades nas quais não se precisava mais justificar a importância de se combater os crimes de racismo, homofobia, xenofobia e sexismo.
O que é grave nesse que parece ser um novo "movimento restaurador" é que, sob a própria perspectiva liberal norte-americana, os Estados Unidos elegeram um criminoso e legitimaram outros tantos criminosos, como os homens que invadiram um discurso de Hillary Clinton exibindo cartazes e cantando "passe a minha camisa". Legitima-se também a ignorância de tantos racistas que dizem que Barack Obama era um terrorista infiltrado. E aqui a questão de raça e de gênero merece ser combinada analiticamente. Após uma família negra ocupar a Casa Branca, elegeu-se um homem branco e de olhos azuis que volta a falar sobre a supremacia branca masculina. De repente o sonho americano viu-se ruir, o consumo e o trabalho se precarizar e, pelo caminho mais fácil, optou-se por apontar culpados.
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Em plena crise econômica e ebulição das insurgências populares do movimento #BlackLivesMatter – que denúncia a violência sofrida pelos negros norte-americanos – não surpreende essa reação branca que vem como emblema de que "todas as vidas importam". Sabemos que não são todas as vidas. E esta luta é precisamente o que me parece violado com a eleição de um criminoso para comandar a nação mais rica do mundo. Sabemos que, na verdade, a vitória de Trump é a vitória da classe trabalhadora, branca e empobrecida dos Estados Unidos, que decidiu responsabilizar a diversidade e o respeito humano por problemas de fundo econômico. Os criminosos não apenas saíram do armário e declararam o indeclarável, mas também entenderam que é possível destilar ódio e, ainda assim, ser recompensado com o mais alto cargo político da arena global. Os efeitos desse processo já foram imediatamente sentidos. Um dia após as eleições, surgiram várias denuncias nas redes sociais do aumento da violência interpessoal por meio do ataque a gays e imigrantes, agredidos nas ruas com gritos ao estilo "seus dias estão contados".
É assustador pensar que, ao longo dos próximos anos, o mundo terá que aguentar as declarações violentas sobre mulheres, gays, negros, mexicanos e chineses em meio a um discurso ufanista e populista da supremacia norte-americana. É claro que aqui me refiro à dimensão simbólica do que Trump representa pedagogicamente. A situação fica pior se pensarmos o que ele pode articular na contramão do mundo globalizado em direção a uma política de portas fechadas. Independentemente dos rumos tomados pela política externa e econômica, o estrago está feito, as feridas já foram abertas e um passo já foi dado para trás na luta por uma humanidade una. O ódio venceu, mas isso é apenas uma parte da história. Movimentos como o #BlackLivesMatter tendem a crescer, assim como os protestos anti-Trump, que se espalharam por todo o país no dia após os resultados. Tudo muito diferente da festa "yes, we can". Hoje, a sensação é de "no, we can't". A era Trump anuncia que serão anos desafiadores, mas também de muita luta por parte de todos aqueles que acreditam que nenhuma vida humana vale mais do que outra.