Quando os presidentes Barack Obama e Raúl Castro anunciaram o acordo para normalizar as relações entre Estados Unidos e Cuba, no final de 2014, restou no tabuleiro uma peça enigmática: Fidel Castro.
Foram seis semanas de um significativo silêncio, até que o histórico líder comunista se manifestasse, por meio de uma carta ao jornal estatal Granma. No texto, não criticou a reaproximação, mas afirmou com todas as letras: não confiava nos americanos. Seis meses depois, voltou a provocar o velho inimigo. Disse que os EUA deveriam indenizar Cuba pelos danos causados ao país.
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Ninguém imagina que o reatamento das relações diplomáticas tenha sido encetado sem a anuência de Fidel, mas, na condição de símbolo da resistência de meio século a Washington e alvo principal de ódio dos influentes cubanos emigrados na Flórida (EUA), ele era a figura que poderia imprimir incerteza ao processo.
O professor Arturo López-Levy, da Universidade do Texas Rio Grande Valley, observou que, com a morte de Fidel, a tendência é de aceleração das reformas econômicas em Cuba, na medida em que dirigentes de perfil mais pragmático, como Raúl, estariam à vontade para agir. Esse seria um cenário favorável para as relações do país caribenho com o gigante do norte.
A grande ironia é que, morto Fidel, um fator de risco muito maior mostra suas garras. E agora não está em Cuba, mas sim nos Estado Unidos: o futuro presidente Donald Trump. O magnata convertido em político não perdeu a oportunidade de ser incisivo tão logo a morte do líder revolucionário foi anunciada. Em contraste com palavras equilibradas de Obama, veio a público para definir Fidel como um "ditador brutal que oprimiu seu próprio povo durante décadas" – o que foi visto por especialistas não só como um desastre diplomático, mas também como ofensa a grande parte dos cubanos em momento de comoção.
Mais significativas, porém, foram as manifestações de Trump durante a campanha eleitoral. Repetidamente, atacou o acordo firmado por Obama e prometeu revê-lo. O problema é que ninguém sabe exatamente o que isso significa. O jornal The New York Times notou que o futuro mandatário apresentou sinais conflitantes: saudou o reatamento das relações diplomáticas, mas também criticou as "concessões excessivas" aos vizinhos.
Para Bruno Mariotto Jubran, pesquisador em assuntos internacionais da Fundação de Economia e Estatística (FEE), mesmo que Fidel não tenha sido empecilho para a reconciliação, era possível que sua morte ajudasse a azeitar o processo. A ascensão do republicano americano altera o cenário:
– Trump é um risco maior. A julgar pelas declarações dele, pode haver retrocesso. Antes a incerteza estava mais em Cuba ou era um troca-troca com os Estados Unidos. Agora, ela está no lado americano.
Postura dúbia dilata incerteza
Sinais de que o recuo é possibilidade real foram dados neste fim de semana por pessoas próximas a Trump. Kellywanne Conway, ex-chefe de campanha, disse que o futuro presidente exige receber algo em troca pelo restabelecimento das relações diplomáticas, afirmando que não houve "nenhuma garantia de que as pessoas que ainda vivem na ilha terão de fato liberdade religiosa, política e econômica". Os senadores Marco Rubio e Ted Cruz, apoiadores de Trump e filhos de cubanos, defenderam abertamente regresso nas engrenagens acionadas por Obama. Cruz quer a manutenção do bloqueio econômico.
– Trump deixou claro que sente que os passos do presidente Obama em direção a Cuba foram equivocados – ressaltou Rubio.
De outro lado, indícios alimentam a esperança de reconciliação. Ao comentar a morte de Fidel, Trump ressaltou que fará de tudo para que "o povo cubano possa finalmente começar sua jornada em direção à prosperidade e à liberdade".
Fabiano Mielniczuk, professor de Relações Internacionais da ESPM-Sul, avalia que Trump pode aproveitar a morte de Fidel para "moderar o tom":
– Durante a campanha, Trump foi bastante duro ao criticar o presidente Obama pelo acordo, chamando-o de "fraco" e deixou claro que iria revê-lo para transformá-lo em pacto mais "forte". Essa postura foi fundamental para garantir o apoio da comunidade cubana na Flórida. Com a morte de Fidel, Trump pode rever essa postura sem necessariamente ser acusado de ter mudado de ideia, mas apontar a mudança do contexto interno de Cuba, agora sem Fidel, como motivo para dar continuidade à postura reconciliadora de Obama.
Com colaboração de agências de notícia