FABIANO MIELNICZUK
Professor de Relações Internacionals da ESPM-Sul e diretor da plataforma educacional Audiplo
Trump venceu. Venceu o candidato que fora descrito pelo New York Times como o "pior candidato nomeado por um grande partido para concorrer à presidência na história moderna dos Estados Unidos" e pelo Washington Post como "terrível" e "desqualificado". De modo geral, essas foram as palavras utilizadas pelos principais veículos da grande mídia americana em seus editoriais abertos de apoio a Hillary Clinton, e representam bem a posição de uma esmagadora maioria dos formadores de opinião do país durante a campanha. Esse "quase consenso" sobre a superioridade de Hillary para desempenhar as funções de presidente, somado aos ingredientes machistas, racistas, xenófobos e homofóbicos que caracterizaram a campanha do republicano, criaram a percepção de que sua vitória seria impossível. O discurso de Trump reforçou nos simpatizantes da candidata democrata a falsa ideia de um progresso inexorável no respeito à diferença e às minorias: "Depois de um negro, uma mulher", bradavam. Até os políticos republicanos tradicionais, que se afastaram de Trump durante a campanha, já se preparavam para fazer oposição no Congresso. Por isso o resultado aturdiu os Estados Unidos e o mundo.
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Esse quadro contribui para a emergência de explicações bastante reducionistas sobre o que está por trás da eleição de Trump. Uma delas é a que culpa o sistema eleitoral norte-americano, visto como anacrônico por se tratar de eleição indireta para presidente da República via colégio eleitoral composto pelos delegados eleitos em cada Estado. Por esse viés, Donald Trump não seria o verdadeiro vencedor, posto que, no cômputo geral, a candidata Hillary Clinton teve uma leve vantagem nos votos destinados à escolha dos delegados responsáveis por eleger o presidente. No total, Hillary obteve aproximadamente 60 milhões e Trump 59,7 milhões de votos. Trata-se de uma diferença de menos de 1% que, para os defensores de Hillary, é mais que suficiente para elucidar a injustiça do sistema. Porém, em termos de delegados, Trump obteve uma maioria esmagadora: 279 contra 228. Obviamente essa diferença decorre do fato de cada Estado ter direito a eleger um número diferente de delegados para o colégio eleitoral, sendo que os critérios para essa diferença envolvem o número de distritos eleitorais nos estados, o número de representantes no parlamento nacional, entre outros. Por esses critérios, a Califórnia elege 55 delegados e Montana apenas três. A característica marcante é que, diferentemente do sistema proporcional que temos para a escolha dos representantes do parlamento brasileiro, em cada Estado americano o partido que obtiver a maioria dos votos elege todos os delegados. Isso explica a maioria de Hillary em relação aos votos dos eleitores e sua derrota em relação ao número de delegados: ela ganhou com uma margem maior de vantagem em Estados populosos, mas perdeu na maioria dos Estados por uma margem apertada. Dos 50 Estados americanos, Trump triunfou em aproximadamente 30. Além disso, ele também foi vencedor em algumas unidades importantes que tinham escolhido o presidente Obama nas eleições anteriores. Não parece, portanto, que a suposta distorção do sistema eleitoral tenha sido responsável por um resultado das urnas que não respeitasse a vontade dos eleitores. O reconhecimento da derrota por parte da candidata Hillary e do presidente Obama parece reforçar essa percepção.
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Há, porém, uma outra análise que é mais simples na sua formulação e mais desafiadora de ser refutada. De modo muito peculiar, essa interpretação é proposta por um filósofo brasileiro, Luiz Felipe Pondé. Para ele, "as pessoas reais não estão nem aí para as discussões de classe, de gênero e raça". Na sua visão, as pessoas reais estariam "preocupadas em janta (sic), escola de filho, em conseguir transar de vez em quando, em ir para as férias, em não ter um filho que morre com uma bala, em arrumar um emprego, em pagar suas contas", e teria sido exatamente com essas pessoas que o candidato Trump "teria conseguido falar", ao passo que os intelectuais e a mídia, alienados em função de viverem em um mundo dos ideais, gastaram energia torcendo pela derrota de Trump sem perceber a proximidade do candidato republicano com a realidade do eleitor.
De fato, o consenso negativo entre a mídia, grupos progressistas e até mesmo setores conservadores do establishment político americano a respeito de Trump foi responsável por cegar boa parte dos analistas a respeito da real possibilidade de sua vitória. Nisso Pondé está corretíssimo. Porém, nada é mais equivocado do que afirmar que as discussões de classe, gênero e raça não tiveram seu papel na eleição de Trump. Pelo contrário, elas foram fundamentais para que o candidato republicano chegasse até a realidade prosaica da vida daqueles que o elegeram, sendo esse o fator decisivo para sua vitória: seu discurso girou em torno dessas questões, porém no sentido inverso do tratamento conferido pelos democratas.
Para entender como isso se deu, é importante resgatar a história recente dos EUA. Com a crise de 2008, a insatisfação da população mais conservadora com os republicanos tradicionais atingiu os dois extremos do espaço social americano. Tanto os liberais mais afluentes, que condenaram o socorro oferecido pelo governo de George W. Bush às grandes corporações envolvidas em fraudes e responsáveis pela crise, quanto a classe média branca com menos instrução e menor renda, que sofreu de modo bastante intenso com o desemprego e a devolução dos imóveis financiados, implodiram por dentro a base de sustentação do governo republicano. É nesse contexto de descrédito do partido republicano que cresce a figura de Barack Obama, baseada na tradicional política democrata de defesa dos direitos das minorias, prometendo a inclusão social dos grupos mais prejudicados pela crise via políticas públicas afirmativas e de bem-estar social. Assim, propostas como o Obamacare, o aumento dos programas de distribuição de cheques assistenciais, o debate em torno da oferta de Ensino Superior público, entre outros, atraíram uma parcela significativa do eleitorado para o campo democrata, contribuindo sobremaneira para a eleição de Obama no pleito de 2008.
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Durante o período Obama, os democratas cometeram erros que tiveram um efeito semelhante ao que contribuíra para a erosão da base republicana durante os mandatos de George W. Bush. Por um lado, Obama manteve em sua equipe econômica muitos nomes vistos pela opinião pública como responsáveis pela crise de 2008. Para os críticos, Wall Street continuava mandando em Washington. Essa aproximação com o mercado e a continuidade em relação ao governo dos republicanos diminuiu a base de apoio formada por democratas tradicionais próximos ao movimento sindical e de jovens democratas ávidos por transformações mais radicais na sociedade. Essa é uma das causas da ascensão de Bernie Sanders, candidato que se definia como socialista, na disputa das prévias dentro do Partido Democrata. Nesse sentido, o vazamento das informações que indicavam o favorecimento do comitê eleitoral democrata a Hillary Clinton no processo das prévias reforçou a associação entre a candidatura Hillary e a política tradicional. Por outro lado, a adoção de medidas favorecendo a legalização da situação de imigrantes, a igualdade de gênero, o fim do encarceramento em massa da juventude negra, a legalização da união de pessoas do mesmo sexo, entre outros, aumentou a sensação de exclusão das classes médias brancas empobrecidas com a crise, que temiam a imposição de uma ditadura das minorias contra os valores tradicionais da sociedade americana e que passaram a ser vistas, em larga escala, como concorrentes no mercado de trabalho. Não é à toa que os eleitores de Trump são, majoritariamente, americanos brancos, do interior, com nível de instrução baixo.
Se o discurso recheado de estereótipos machistas, racistas e xenófobos de Trump fez sentido para seus eleitores, isso ocorreu exatamente pela centralidade de temas como classe, gênero e raça para a sociedade americana. Se considerarmos esses aspectos, o anti-intelectualismo reinante nos discursos políticos contemporâneos passa a fazer sentido, e os intelectuais comprometidos com causas progressistas terão mais condições de pensar em alternativas para um futuro desafiador.