IMAGENS: FÉLIX ZUCCO
As ruas de Caracas espelham não apenas a crise socioeconômica da Venezuela e seu alarmante grau de insegurança, mas também sua turbulência política. Na comparação com a viagem que fiz em abril de 2015, há mais outdoors pedindo a libertação do líder oposicionista radical Leopoldo López. E menos cartazes de apoio ao governo chavista.
O apelo pela libertação de López e dos outros 95 presos políticos une uma oposição historicamente fracionada. Líderes moderados, como o ex-candidato presidencial Henrique Capriles (que perdeu as eleições presidenciais de 2013 para Maduro), defendem estratégia diferente da adotada por López, mais adepto ao confronto. Ainda assim, entendem que ele tem o direito de pensar como quiser e não estar preso por isso – está na cadeia há um ano e meio, com pena de quase 14 anos.
– Ele está isolado, na solitária – conta seu advogado, Juan Carlos Gutiérrez. - Só vê os advogados. É sempre uma luta para que veja a mulher e os filhos (a menina Manuela, de cinco anos, e o menino "Leopoldito", de três). Pedi hoje ao parlamento que recorra a organismos internacionais dizendo que a prisão de Leopoldo é uma tortura permanente (ZH entrevistou Gutiérrez poucos minutos após ele ter feito esse apelo, em frente ao parlamento, no dia 29).
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No último ano, a situação só piorou. Se em abril de 2015 entrevistei os pais de López, hoje o pai, Leopoldo López Gil, está na Espanha, sem poder retornar à Venezuela por razões políticas. Tanto ele quanto a mãe de López, Antonia, receberam cidadania espanhola, para ter um mínimo de estabilidade familiar.
– Nossa vida é afetada pela perseguição policial e judicial que meu filho e meu marido passam. Não vejo a hora de que tudo isso seja superado – diz, emocionada, Antonia, que segue morando em Caracas.
– O drama dos pais de Leopoldo e das crianças é terrível. Leopoldo é jovem (tem 45 anos) e saudável. Está segurando o lado emocional, mas não sei até quando - diz o advogado Gutiérrez.
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Outro caso é o da ex-deputada María Corina Machado, que recebeu a reportagem em seu escritório político. Corina está inabilitada politicamente, proibida de deixar a Venezuela e acusada de conspiração, incitação à violência e traição à pátria. São as mesmas acusações que pesam sobre López.
O motivo é a morte de 43 pessoas. Os presos políticos estão nessa situação por supostamente incitarem a violência e a repressão policial que causaram essas mortes. E a maioria dos mortos são opositores do governo.
– O que ocorre na Venezuela é um absurdo. Dizem que a oposição é fragmentada, mas não, ela é plural. Não precisamos pensar exatamente da mesma forma. Vamos, juntos, enfrentar essa situação e provocar, de forma constitucional e legítima, uma mudança nos rumos do país. É questão de tempo – estima Corina.
A reportagem conversou também com um dissidente do chavismo, o vereador de Sucre Humberto Berroteran, que, até novembro, era governista e trabalhava em cargos estratégicos do governo. Berroteran é viúvo de Lina Ron, uma das maiores referências do chavismo, notória por liderar movimentos sociais chavistas e fundadora de um dos partidos que dão sustentação ao movimento. Lina morreu de infarto em março de 2011.
– Deixei o chavismo em novembro do ano passado, mas tanto eu quanto Lina sempre tivemos admiração por Chávez. Maduro não é Chávez. O único objetivo do governo é manter o poder, custe o que custar, mesmo que o país esteja caindo aos pedaços. Dizem que vivemos sob o socialismo. Não é verdade. Só vejo capitalismo por tudo que é canto, só vejo ganância e cobiça – diz Berroteran.
UMA BANDEIRA COMO
ABAIXO-ASSINADO
Em meio a toda essa aridez política, o escritor e jornalista venezuelano Carlos Javier Arencibia, 25 anos, tem percorrido Caracas com uma bandeira do Mercosul. Dirigindo um Renault Clio por todos os cantos, Arencibia, ex-líder estudantil, se diz um esquerdista que defende o choque capitalista no seu país para então dar vazão a políticas assistenciais, no antigo método de fazer o bolo crescer para depois dividi-lo. A bandeira lhe foi enviada em 30 de novembro do ano passado pelo documentarista brasileiro Dado Galvão - o mesmo que trouxe a dissidente moderada cubana Yoani Sánchez ao Brasil quando o governo de Raúl Castro dava os primeiros sinais de abertura. Nas palavras de Arencibia, a bandeira é "objeto de uma campanha pela cidadania e pela democratização venezuelana". Em resumo, é um gigantesco abaixo-assinado.
Autor do livro Testemunhos da repressão, Arencibia pretende levar a bandeira pelo território venezuelano. As pessoas poderão assinar e escrever nela mensagens com suas inquietações. O jornalista trabalha, na peregrinação, com a estudante Sairam Rivas, que ficou 155 dias presa em 2014 por "questões de consciência".
No seu livro, Arencibia detalha a violência policial e militar exercida pelo governo de Maduro em 2014. Naquele ano, o chavismo prendeu 3.765 pessoas, conforme dados da ONG Foro Penal. O jornalista entrevistou 16 jovens detidos durante a onda de protestos contra Maduro. Todos relatam a violência de agentes da Polícia Nacional Bolivariana (PNB), da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) e do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin).
Betania Farrera, uma das estudantes que depuseram para Arencibia, diz:
– Meteram-me presa para me provocar medo. No fim, o que conseguiram foi me fortalecer. Aspiro a um país sem delinquência, onde se possa transitar tranquilo a qualquer hora, por qualquer parte. Quero levar meus sobrinhos para o parque à noite, quero que não faltem medicamentos, que tenhamos hospitais públicos adequados e comida sem precisar fazer fila, um país sem divisões.
DISCURSO DE MADURO SUGERE
FECHAR O PARLAMENTO
Enquanto ZH estava em Caracas, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, fez pronunciamento sobre os seis meses de uma Assembleia Nacional unicameral, com maioria oposicionista pela primeira vez em 17 anos. E o discurso foi de enfrentamento, insinuando que ele daria vazão a ideias de fechar o parlamento.
– O país não pode aceitar que a Assembleia Nacional seja um obstáculo – disse, voltando a enfatizar que, a seu ver, a crise vivida é culpa da oposição, da chamada "burguesia internacional", dos Estados Unidos e dos empresários que tiram produtos das prateleiras com o objetivo conspiratório de fragilizar o governo. – Afundaram o Poder Legislativo a níveis de 20 ou 30 anos atrás – acrescentou.
Maduro prosseguiu, dizendo que "o balanço é bem clarinho". O Legislativo, na visão do presidente, "faz leis inconstitucionais, leis antipopulares, pretenderam privatizar a Missão Habitacional (projeto assistencial), pretenderam legalizar o terrorismo, o narcotráfico, a chamada Lei de Anistia (que busca libertar os presos políticos). Em seis meses, nada fizeram a favor do povo, só fizeram coisas para prejudicar o povo, a economia, o funcionamento institucional, a paz do país, fizeram ridículo na OEA (Organização dos Estados Americanos, para a qual a oposição levou sua preocupação com o caos do país)".
Recentemente, o chavista histórico Tarek Saab, atual chefe da governista defensoria do povo, saiu a público para criticar a proposta que alguns correligionários já fizeram de pedir ao Judiciário o fechamento do Legislativo.
– Na Venezuela há posturas que podem, sim, ser extremistas ou radicais – reconheceu Saab.
O motivo para a declaração de Saab foi a explicação dada por Didalco Bolívar, porta-voz da coalizão que apoia Maduro, que revelou a discussão formal da aliança partidária Grande Polo Patriótico (GPP) sobre a possibilidade de pedir ao Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) a dissolução da Assembleia por "usurpar funções do governo".
Na visão de Saab, discursos assim são contraproducentes para o próprio Maduro. Podem esvaziar qualquer possibilidade de diálogo pacificador com a oposição em meio à tentativa de realizar o referendo revogatório.
Para a oposição, uma pacificação política na Venezuela passa por duas exigências: a permissão para que se realize o referendo revogatório seguido de novas eleições e a libertação dos presos políticos. O referendo é instrumento constitucional de recall do mandato presidencial de seis anos quando chega à metade. No caso de Maduro, a posse ocorreu em abril de 2013. Logo, a metade seria em abril de 2016, quando o mandato chegou a três anos. O trâmite envolve diversas etapas, com coletas de assinaturas, confirmações digitais e convocação para o voto, mas há um detalhe essencial: caso o referendo ocorra no quarto ano do mandato ou depois, não haverá novas eleições, e sim a posse do vice. A data que separa as duas possibilidades, na prática totalmente opostas, é 10 de janeiro de 2017. E aqui vai um "subdetalhe", também relevantíssimo: na Venezuela, o vice é escolhido pelo presidente a qualquer momento, como um ministro. Cogita-se que o desejo de Maduro seria colocar na presidência a própria mulher, a procuradora Cilia Flores. O fracionamento do chavismo (Maduro e o nº 2, Diosdado Cabello, por exemplo, mal se falam) talvez inviabilize essa intenção.
Nas eleições de 2013, o presidente venceu o opositor Henrique Capriles com apenas 50,61 % dos votos. Pela regra do referendo, basta agora à oposição ter esse mesmo percentual ou, evidentemente, mais do que isso (se a vitória de 2013 tivesse sido com 70%, apenas a partir de 70% de votos contrários o mandato poderia ser revogado três anos depois). Os adversários do presidente, portanto, só precisam de uma vantagem pequena. E essa vitória magra em 2013 ocorrera em muito porque havia ainda a comoção pela morte do “padrinho” de Maduro, Hugo Chávez. Também não havia o caos socioeconômico. Nos contatos da reportagem pelas ruas de Caracas, são raríssimas as pessoas que não reclamam do governo. De um esquerdista que pediu anonimato, veio a queixa: o chavismo adotou, para seu uso exclusivo, a cor vermelha e palavras como "pátria", "socialismo", "povo”, "soberania", "Bolívar" e "revolução". No caso da palavra "pátria", o desconforto é ainda mais forte. Maduro costuma se apresentar como a personificação patriótica. Era ele, nas eleições de 2013, o "candidato da pátria". Restava aos adversários o estigma de apátridas ou traidores. O esquerdista, um homem de 77 anos, comenta:
– Chávez nunca foi da verdadeira esquerda, e Maduro muito menos. É truculento e se aferra ao poder. Chávez era militar sem perfil ideológico definido. Era de uma direita clássica. Quando chegou ao poder, o petróleo estava com os preços lá em cima. Aproveitou-se e fez o certo ao distribuir a riqueza. Mas e depois?
Para retardar a realização do referendo, Maduro já conseguiu que o Tribunal Supremo de Justiça, acusado pela oposição de ser o "escritório de advocacia chavista", definisse janeiro como o começo do seu mandato, e não abril - janeiro foi quando Maduro assumiu interinamente no lugar de Chávez, que estava em tratamento contra o câncer e morreu em março daquele ano; abril foi quando o atual presidente tomou posse após as eleições de 13 daquele mês. Sob a justificativa da racionalização energética, Maduro determinou que os serviços públicos não funcionam em diversos dias. Tudo isso faz com que o referendo possa ser empurrado para depois de 10 de janeiro. Portanto, sem novas eleições e com novo presidente indicado pelo atual.
OPOSIÇÃO UNE FORÇAS,
PRESIDENTE RESISTE
A oposição venezuelana vinha se dividindo em três estratégias para afastar Maduro. Uma, defendida pelo presidente do Legislativo, Henry Ramos Allup, é a de promover a reforma constitucional, encurtando o mandato presidencial de seis para quatro anos. Outra, preferida por María Corina, Leopoldo López e o ex-prefeito de Caracas Antonio Ledezma (em prisão domiciliar), é a de fomentar protestos de rua para pressionar Maduro a renunciar – é a "linha radical". A terceira é o referendo revogatório, defendida pelo moderado Capriles.
Para manter a coesão, o discurso oposicionista é o de que as três vias são aceitáveis. O referendo, porém, é a alternativa vista como inquestionavelmente constitucional e legítima, e todos fecham questão em torno dele, mesmo que em uma unidade frágil e pontual. Assim como no chavismo há facções se digladiando, na oposição ocorre o mesmo.
Em meio a tanta energia posta a serviço do afastamento de Maduro, ele enfrenta um contexto adverso. Se Chávez tinha carisma, popularidade e petrodólares jorrando de forma intensa, o atual presidente abusa da truculência para compensar a falta de características que perfilavam o caudilho bonachão e cheio de dinheiro para promover ações sociais e atenuar as divisões de classe.
Não é de estranhar que sete em 10 venezuelanos, conforme o Datanálisis, reprovam o governo. Segundo o instituto de pesquisa, a popularidade de Maduro fica em 26,8%. O que provoca indagações é: como pode o presidente se manter no poder mediante tanto desgaste?
Analistas como Luis Vicente León dizem que Maduro deve muito de sua permanência no cargo ao controle institucional chavista sobre o comando militar. Tamanha fidelidade é conseguida em razão da ocupação, por oficiais ativos ou inativos, de 10 dos 30 ministérios, entre eles os estratégicos de Agricultura, Defesa e Habitação. Cientista político e proprietário do Datanálisis, León atribui a isso a resistência do presidente em meio ao caos. Ter “o controle das instituições” e “relação estreita com os militares” é fonte de força e vitalidade. Soma-se a isso uma presença forte no Tribunal Supremo de Justiça e no Conselho Nacional Eleitoral (CNE).
Outros elementos, conforme León, são a tibieza e a divisão da oposição.
– Falta um líder oposicionista que empolgue – diz León. – Capriles mostrou fraqueza ao não insistir na revisão dos votos em 2013, apesar de haver diversas acusações sobre fraudes que teriam levado à vitória de Maduro. Os outros líderes não empolgam com seus discursos de confrontação. A massa não se vê refletida neles.
A ausência de um líder de destaque ajuda a forjar a unidade ocasional da oposição. A informação com que os adversários de Nicolás Maduro trabalham é: caso vingue o referendo revogatório ainda em 2016, os venezuelanos se sentirão protagonistas, e isso reforçará o apelo por mudança, independentemente de haver um grande líder.