A decisão da rede Médicos Sem Fronteiras (MSF) de não participar da Cúpula Humanitária Mundial, em Istambul, na Turquia, expõe o fosso entre a Organização das Nações Unidas (ONU) e alguns dos principais atores não estatais globais em relação à forma de lidar com a maior crise de refugiados dos últimos 70 anos.
Proponente do encontro marcado para os dias 23 e 24, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pretende que a iniciativa abra caminho para uma maior coordenação entre os envolvidos na assistência a vítimas de guerras, catástrofes ambientais, fome e miséria endêmicas. A MSF, por sua vez, depois de ter 75 hospitais bombardeados somente no ano passado, acusa os organizadores da cúpula de escamotear a responsabilidade dos Estados pela atual situação, especialmente por violações da lei humanitária internacional.
A decisão da MSF de se retirar do encontro de Istambul foi anunciada na quinta-feira, uma semana depois de um relatório do Departamento de Defesa dos Estados Unidos responsabilizar administrativa e não criminalmente os envolvidos no bombardeio de um hospital da ONG em Kunduz, Afeganistão. O ataque, em 3 de outubro do ano passado, deixou 42 mortos, entre pacientes, médicos e trabalhadores de apoio. O Pentágono confirmou que dispunha das coordenadas do hospital.
"A cúpula (de Istambul) tornou-se uma cortina de fumaça de boas intenções, permitindo que essas violações sistemáticas, principalmente por parte dos Estados, sejam ignoradas", afirmou a MSF em comunicado.
O porta-voz de Ban, Stephane Dujarric, expressou decepção com a retirada da ONG, qualificada como "voz forte e influente". O diretor do Conselho Nacional de Refugiados da Noruega para a Jordânia, Petr Kostohryz, disse que o foco nas necessidades imediatas dos deslocados, nas primeiras fases da atual crise, criaram um grau de "dependência de ajuda humanitária" em vez de buscar soluções de longo prazo.
– Corremos o risco de perder uma geração de crianças sírias refugiadas – afirmou Kostohryz.
Segundo números da ONU, mais de 125 milhões de pessoas necessitam de ajuda humanitária. Desse total, cerca de 60 milhões foram deslocadas à força, o maior número de indivíduos nessa condição desde a II Guerra Mundial. Aos conflitos no norte da África, no Oriente Médio, no Leste Europeu e na Ásia Central, somam-se epidemias como as de ebola e zika e catástrofes como os terremotos no Nepal e no Equador.
ENTREVISTA - Jason Cone, diretor executivo da Médicos Sem Fronteiras
"É preciso assegurar que comandantes em terra ou no ar saibam que não estão alvejando instalações civis ou médicas"
As epidemias de ebola na África Ocidental e de HIV no mundo inteiro e o terremoto no Haiti foram alguns dos episódios que moldaram a trajetória do americano Jason Cone. Diretor executivo da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) desde o ano passado, o biólogo graduado pelo Franklin and Marshall College envolveu-se diretamente na resposta da organização aos ataques a seus hospitais em países conflagrados como Afeganistão, Síria e Iêmen no ano passado. Na segunda-feira, por telefone, de Nova York, Cone falou a Zero Hora sobre a campanha Hospitais #NãoSãoUmAlvo, lançada pela organização:
A multiplicação de ataques a instalações de saúde no momento em que a tecnologia militar é capaz de identificar o que ocorre no terreno causa estranheza. Por que isso acontece?
Os maiores garantidores da paz mundial hoje estão no Conselho de Segurança da ONU. Quisemos ir até lá para denunciar sua participação nesse tipo de abuso. A tecnologia certamente permite que se evite esse tipo de ataque, mas é apenas um meio, não muda as regras. É preciso assegurar que comandantes em terra ou no ar saibam que não estão alvejando instalações civis ou médicas. Percebemos que, em muitos lugares, médicos são atacados por oferecer assistência aos inimigos dos governos. Essa situação não se aplica apenas a hospitais. Há bombardeios contra escolas, abrigos, poços. Todas essas instalações se tornaram alvos nos campos de batalha nos últimos anos.
Outras organizações além de MSF estão sendo atingidas?
Sim. Muitos desses ataques foram promovidos por forças locais. Em janeiro, um hospital mantido pelo Comitê Sueco para o Afeganistão foi atacado pelas forças especiais afegãs na província de Wardak. Três pacientes e um enfermeiro foram mortos fora do hospital. Em países africanos como Congo, Sudão do Sul e República Centro-africana, outras organizações têm sido vítimas. A comunidade internacional e a Cruz Vermelha documentaram 2,4 mil ataques contra hospitais em 11 países entre 2011 e 2014.
Quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU estiveram envolvidos direta ou indiretamente nos ataques sofridos por MSF. A resolução do Conselho na semana passada representa alguma garantia de mudança?
Essa é uma responsabilidade dos Estados membros da ONU. São eles que armam as forças combatentes, que influenciam coalizões, transferem armas e assim por diante. O fato de os membros do mais alto organismo internacional terem aceitado uma resolução que condena esses ataques é significativo.