Não é só para consumo doméstico que a Presidência de Michel Temer busca respaldo na sociedade e tenta se legitimar em meio ao processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff. No cenário internacional, o chanceler José Serra tem três missões: dar contornos de normalidade ao governo que pretende emplacar dois anos e meio de gestão, lapidar a imagem brasileira para não cair no lugar comum da tradição latino-americana de fragilidade institucional e, ainda, mostrar um perfil pragmático, trocando a visão de alinhamento ideológico muitas vezes contestado pelo foco em interesses comerciais brasileiros.
Eventuais restrições a Temer não partem apenas dos "bolivarianos". Até o governo americano é discreto. Por ora, evitou comunicações bilaterais. Luis Almagro, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), organismo do qual os EUA fazem parte, se contrapôs ao afastamento de Dilma. Já ao presidente venezuelano Nicolás Maduro, Almagro chama de "ditadorzinho", defendendo o referendo revogatório, de viés político, previsto na Venezuela.
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O desafio de Temer e Serra é grande. Até o comentário de Mauricio Macri, o presidente argentino de centro-direita, teve ressalvas.
A chanceler Susana Malcorra revelou que Macri mantinha relação fluida com Dilma e cogitou elementos "de gênero" no afastamento. Tal alusão, com críticas à "legitimidade questionada", incrementou-se quando Temer apresentou seu ministério de homens brancos.
– Haverá um processo de esclarecimento, e esse processo está em curso – diz Rafael Benke, presidente do conselho curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), órgão independente que se dispõe a "levar conteúdo" ao Itamaraty e prevê mais pragmatismo (leia entrevista ao lado).
Venezuela, Cuba, Chile, Equador, Bolívia, Nicarágua e El Salvador definiram a situação brasileira como golpe. Venezuela e El Salvador chamaram seus embaixadores para consultas. O Uruguai rejeitou relações com Temer. Tudo isso era esperado e já foi contestado em duas cartas duras de Serra. À União das Nações Sul-Americanas (Unasul), tida como "bolivariana", mas presidida pelo economista e advogado colombiano moderado Ernesto Samper, o novo chanceler reprovou o que chamou de "argumentos equivocados" e "juízos de valor infundados e preconceitos", dizendo que o processo brasileiro é constitucional e legítimo.
O problema maior, para Temer, é, por exemplo, a reação americana. O governo do presidente Barack Obama alegou pruridos de não intervenção para se limitar a manifestar a "confiança" na "capacidade da democracia brasileira" de superar momentos "turbulentos".
Em pauta, o custo das embaixadas
Os governos europeus também mantêm o baixo perfil. Na imprensa, houve críticas, em sua maioria de articulistas. No The New York Times, o tom do correspondente Simon Romero foi severo. Também houve artigos em tom negativo no britânico The Guardian, no espanhol El Pais, no francês Le Monde e nos alemães Spiegel e Die Zeit. O novo Itamaraty trabalha com a ideia de que entrará em uma disputa midiática.
O historiador argentino Carlos Malamud, que vive em Madri, identifica na opinião internacional a imagem de "uma onda golpista na América Latina". Mas pondera que isso deve ser relativizado:
– Qualquer tentativa opositora de ganhar eleições, qualquer decisão judicial adversa ou pronunciamento de ator político relevante contra o governo, que seria o único portador de legitimidade, é visto como golpe em potencial.
Serra já mudou discurso e práticas. Ao rechaçar críticas em notas veementes, deu novo tom ao Itamaraty. Também encomendou estudo sobre os custos de embaixadas abertas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) no chamado "sul-global".
Professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, Oliver Stuenkel identifica questões mais pragmáticas do que ideológicas na atuação de Serra. Considera a mudança em relação à África e ao Caribe o ajuste de uma racionalização maior. Cogita que, em outro contexto, Serra manteria as embaixadas. E faz uma ponderação: haveria "risco" nessa atitude, porque outros países ocupariam o espaço deixado pelo Brasil.
ENTREVISTA
“Itamaraty retoma papel centenário”, diz presidente do conselho curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Rafael Benke
Qual será a estratégia do chanceler José Serra?
Será de reativar o Itamaraty e usar seu potencial, capacidade e musculatura. A meta é recuperar a força que não vinha sendo utilizada, principalmente no aspecto mais pragmático.
Como vocês, do Cebri, vão contribuir?
Levamos conteúdo para a formação de políticas mais robustas. Temos a tradição de apoiar o governo com conteúdo.
O que se pode esperar do Itamaraty sob José Serra?
A atuação terá a ver com a intensificação da agenda regional, mas com mais pragmatismo. Teremos mais pragmatismo e mais inserção comercial. O Brasil tem uma diplomacia centenária e saberá usar isso. Haverá um processo de esclarecimento, e esse processo está em curso.
Dará resultado?
O Itamaraty não só se robustece, mas retoma o papel centenário mundial, em que a diplomacia proativa nunca foi tão necessária. A diplomacia tem papel fundamental em uma agenda pragmática e de integração.