Eles eram o cartão postal do Afeganistão rural e praticamente intocado: antigos e gigantescos Budas de pedra que se tornaram o símbolo do fanatismo religioso e da intolerância do Talibã.
Agora, quase 13 anos depois de os Budas de Bamian terem sido detonados em pedacinhos, o mundo enfrenta um novo dilema: deixar os buracos na encosta da montanha onde as estátuas gigantes costumavam ficar, restaurar os budas a partir do que restou, ou criar cópias dos originais. E como costuma acontecer atualmente entre o Afeganistão e seus principais apoiadores ocidentais, as opiniões são apaixonadamente divididas.
Os países que mais teriam de doar dinheiro para financiar a restauração afirmam que o lugar deveria ser deixado como está, ao menos por enquanto. O governo afegão quer que ao menos uma das estátuas seja reconstruída.
No centro do conflito está um misto poderoso de ideologia política e uma crescente política de restauração que geralmente fica relegada a debates cabeçudos entre arqueólogos. O governo afegão precisa da vitória simbólica sobre o Talibã que a reconstrução dos Budas representaria. Muitos dos órgãos que financiariam a reconstrução temem que tenha restado tão pouco das peças originais que o resultado seria mais uma reprodução, que um relato fiel da história.
O debate envolve a Unesco e muitos de seus doadores, que há alguns anos criaram o Grupo de Trabalho de Especialistas, que se reúne todos os anos para debater o futuro do local e que, até o momento, só concordou com a necessidade de preservar e estabilizar os nichos onde as estátuas costumavam ficar, prevenindo mais danos no futuro. Por enquanto, os conservacionistas têm a palavra final; os Budas de Bamian e outras partes antigas da região foram declaradas Patrimônio Mundial da Unesco e quaisquer modificações na face do montanha de Bamian precisariam ser aprovadas, na prática, pelo grupo.
Entretanto, sua posição tem sido questionada. No ano passado, conservadores alemães que estavam fazendo a obra de estabilização no nicho oriental começaram silenciosamente a construir pilares para apoiar as esculturas e proteger os visitantes de possíveis colapsos.
No entanto, os pilares se pareciam incrivelmente com pés gigantes - similares aos que os conservadores indianos haviam construído para repor os originais desaparecidos nos anos 1970. Michael Petzet, arqueólogo e presidente da filial alemã do Conselho Internacional de Locais e Monumentos Históricos, que foi contratado pela Unesco para fazer boa parte do trabalho de preservação, não esconde quais são suas intenções.
- Esses pés foram feitos com a única ideia de salvaguardar a integridade da estrutura, e talvez no futuro, se o governo afegão quiser fazer um pouco mais, podemos reconstruir a partir daqui, afirmou Petzet.
Quando a Unesco descobriu o que estava acontecendo, pediu imediatamente para que o governo Afegão ordenasse que os trabalhos fossem suspensos, uma decisão que foi acompanhada de debates acalorados na reunião de dezembro do ano passado do Grupo de Trabalho de Especialistas.
- Nossa prioridade foi estabilizar elementos icônicos do Patrimônio Mundial que estão instáveis. Fazer uma boa restauração quando as medidas iniciais ainda não foram completas é um engano, afirmou Brendan Cassar, da Unesco.
O nicho ocidental continua correndo o risco de desabar, segundo ele, com pedras caindo o tempo todo, em parte por conta dos explosivos de alta potência usados pelo Talibã para destruir os monumentos. Faltaram ao menos 700.000 dólares em doações para que esse trabalho básico fosse concluído, segundo Cassar.
- O ponto de vista da Unesco é de que a restauração seria colocar o carro na frente dos bois. Precisamos preservar todas as opções para as gerações futuras. Petzet argumenta que reconstruir os Budas não seria diferente das iniciativas anteriores de restaurar partes do Fórum Romano - outro projeto criticado por alguns arqueólogos - ou reparar os mosaicos danificados após o terremoto em Assis, na Itália, afirmou.
- Esse desejo é natural do ser humano. Na França, catedrais inteiras foram reconstruídas em estilo Gótico depois de serem explodidas por protestantes nos anos 1600, afirmou.
- Falei com muitos afegãos e eles não querem que seus filhos e netos sejam obrigados pelo Talibã a ver apenas ruínas, afirmou.
Pessoas que sabiam muito pouco sobre o Afeganistão tinham ciência de que havia algo de espetacular nessa remota província montanhosa, por onde a antiga Rota da Seda cruzava o Hindu Kush, e onde um enorme complexo monástico budista floresceu no século VI.
Os monges esculpiram os grandes desfiladeiros, criando uma rede de câmaras cerimoniais e monástica na pedra. Mais de 1.000 dessas câmaras ficam na região dos Budas que foram destruídos. O maior dos dois tinha 53 metros de altura - o mais alto do mundo, maior que a Estátua da Liberdade. O menor ainda tinha 35 metros de altura.
Boa parte da rede de túneis, escadas e passagens esculpidas em rocha maciça - que conectam as cavernas e os nichos onde os Budas costumavam ficar - continua intacta.
O Talibã não foi o primeiro grupo de visitantes muçulmanos a atacar os monumentos. O islamismo proíbe qualquer forma de idolatria e sucessivas ondas de conquistadores voltaram sua artilharia aos nichos. No início do século XX, os Budas já estavam bastante deteriorados, nenhum dos dois possuía suas faces de madeira, que antigamente eram coroadas com enormes lanternas acesas atrás dos olhos durante a noite.
Durante a guerra contra a ocupação soviética, comandantes mujahidin usaram armamentos pesados para destruir um Buda sentado, que havia sido esculpido em uma das encostas da montanha, e saquearam muitas das cavernas. Os domos de algumas dessas cavernas foram profanados; os combatentes construíram andaimes para deixarem a marca dos pés sujos de lama no teto, algo considerado extremamente ofensivo pelos budistas.
Todavia, o Talibã realizou uma destruição mais sistemática das estátuas de cerca de 1.500 anos de idade, colocando explosivos nos nichos em 2001, reduzindo as estátuas a escombros e deixando os nichos e muitas das passagens instáveis.
Petzet afirma que a equipe de restauradores foi capaz de identificar e catalogar cerca de 30 por cento da superfície do menor dos Budas. O suficiente, segundo ele, para restaurá-lo de forma convincente.
Todavia, a Unesco diz que outros especialistas não estão certos de que o valor esteja correto, e afirmam que o material recuperado não passa de 10 por cento.
- O ponto é o seguinte: só restou um percentual muito baixo da superfície. Alguns pedaços têm o tamanho de um carro, outros, de um grão de areia, afirmou Cassar. Além disso, o tipo de arenito onde os Budas foram esculpidos é extremamente instável.
- É um desastre que nunca será consertado, afirmou.
Abdul Ahad Abassi, diretor de monumentos do Ministério da Cultura afegão, afirmou que o governo pediu formalmente para que o Buda menor seja reconstruído e que o Comitê de Patrimônios da Humanidade da Unesco está estudando o caso.
- Em 10 anos, o Grupo de Trabalho de Especialistas não chegou a qualquer decisão final. Eu sei que eles tiveram algumas conquistas, mas 10 anos? O principal problema é que não há um país doador que diga: 'Ok, nós pagaremos, afirmou Muhammad Asir Mubaligh, vice-governador de Bamian.
A Coreia do Sul anunciou recentemente uma bolsa de 5,4 milhões de dólares para o local, mas o dinheiro deve ser destinado à construção de um museu dedicado à antiga cultura de Bamian e ao treinamento do pessoal. Propostas japonesas e italianas exigem a construção de outro museu e de projetos de preservação em Bamian. Nenhuma das propostas inclui dinheiro para a reconstrução dos Budas.
- Acredito que devemos reconstruir um deles para atrair os turistas, e deixar um do jeito que está, como um lembrete do que o Talibã fez. A melhor forma de proteger nossos monumentos é torná-los novamente valiosos, afirmou Abdullah Mahmoodi, da Associação de Turismo de Bamian.
Afeganistão
Países dividem-se sobre reconstrução de Budas de Bamian
Dilema está em deixar os buracos na encosta da montanha onde as estátuas foram detonadas, restaurar os budas a partir do que restou, ou criar cópias dos originais
GZH faz parte do The Trust Project