De Washington a Tóquio, passando por Kiev, o problema mais complicado das últimas horas é adivinhar as intenções do mais enigmático ator da presente crise entre Ucrânia e Rússia: Vladimir Putin, presidente da Rússia.
Protegido por um silêncio enervante desde sábado, quando o parlamento russo aprovou resolução em que pedia autorização para uso de força militar contra a Ucrânia, o líder tem emitido sinais contraditórios que podem significar tanto o mais alto índice de sangue-frio quanto a mais absoluta improvisação. Somente nesta segunda-feira, o banco central da Rússia torrou US$ 10 bilhões para defender o rublo, que sofreu desvalorização recorde em razão da queda de braço com Kiev.
O balanço do dia:
> EUA suspendem cooperação militar com a Rússia
> Otan pede nova reunião de emergência para tratar de Kiev
> Rússia enfrentará pressão diplomática e econômica, diz Cameron
> Yanukovich pediu auxilio militar a Putin, diz embaixador russo
> Rússia nega ultimato e ameaça de ataque à Ucrânia
Enquanto a diplomacia europeia marcou para quinta-feira uma "cúpula extraordinária, com o objetivo de contribuir para frear a escalada" (conforme nota oficial), os EUA suspenderam toda a cooperação militar com a Rússia - sinal claro de que a situação está fugindo do controle. Um tom acima, a Polônia - que compartilha com a Ucrânia uma fronteira de 535 quilômetros e uma história comum com a região ocidental - pediu uma reunião de emergência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Na Crimeia, convertida em epicentro das tensões, tropas russas movimentam-se de maneira ostensiva, inclusive cercando unidades do exército ucraniano. Um suposto ultimato russo às forças ucranianas na península, que na noite de segunda-feira era noticiado por redes de TV de língua ucraniana em Kiev, foi negado como "completo absurdo" pelo Ministério da Defesa russo. Fotografias mostram, no entanto, que navios de guerra russos estão restringindo o movimento de embarcações ucranianas na baía de Sebastopol. Ao mesmo tempo, grupos pró-russos no leste e no sul da Ucrânia entraram em cena, ingressando em parlamentos e prédios públicos. Houve derrubada de portões e arrombamento de portas, mas sem confronto físico direto. Em Donetsk (leste) e Odessa (sul), a palavra de ordem mais ouvida não era "Rússia" ou "guerra", e sim "referendo", numa demonstração inequívoca de que as pendências políticas devem ser resolvidas pela via constitucional. À noite, o presidente Oleksandr Turchinov afirmou que o governo havia reassumido o controle nessas localidades.
Em Kiev, a Praça Maidan (Independência) continuou atraindo multidões comovidas apesar do frio de 1°C e da neve, mas sem os números impressionantes das últimas semanas. O governo de Turchinov e do primeiro-ministro Arseni Yatseniuk, que nada mais são do que figuras do establishment político de oposição ao presidente deposto Viktor Yanukovich, não é uma fonte irresistível de esperança para os kievianos.
- Esses líderes tiveram uma atitude oportunista ao galgar o governo usando as barricadas da Praça Maidan como degraus. Ninguém aceitava o governo deposto, principalmente em razão da corrupção, mas não devemos nos esquecer que Yanukovich (Viktor Yanukovich, o presidente deposto) havia sido eleito. Quem elegeu Turchinov e Yatseniuk? - afirmou uma jovem estudante a Zero Hora, na noite de ontem, na Praça Maidan.
Mais do que uma divisão política
Jogo de nervos? Manobra temerária? Feitiço em vias de se voltar contra o feiticeiro? Talvez a crise seja um pouco disso tudo e algo mais. Putin, de longe o líder mundial mais seguro de si no atual confronto, parece ter estimulado conscientemente o sentimento nacional pró-russo a fim de explorá-lo politicamente. A ideia de uma Ucrânia dividida entre um "oeste pró-europeu" e um "leste pró-russo", porém, apesar de muito difundida nas últimas semanas, é, como todas as fórmulas, um retrato incompleto da situação do país. A propaganda russa de que Kiev está à mercê de "fascistas com as mãos manchadas de sangue" pode ter algum apelo para os habitantes do leste, que não têm ideia do que acontece na capital, mas a possibilidade de uma divisão territorial da Ucrânia é mais apavorante para todos os ucranianos. Nas grandes cidades, a identidade nacional ucraniana é algo mais complexo do que os fabricantes de mitos tentam fazer crer. O idioma ucraniano, que os soviéticos tentaram sutilmente sufocar entre os anos 1930 e 1980, está mais vivo do que nunca, mas, mesmo quando eram parte da União Soviética, os ucranianos aprendiam o russo como segunda língua. O resultado foi o aparecimento de um idioma híbrido de russo e ucraniano, o surjuk (algo como o portunhol para brasileiros e argentinos).
Ler os pensamentos de Putin pode não ser fácil. Mas, diante do atual impasse, as mentes de 46 milhões de ucranianos também estão funcionando freneticamente. E, se o líder russo fosse capaz de decifrar-lhes o código, não teria evoluído de fiasco em fiasco desde o início da crise.
Do correspondente
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