A cena se deu na última terça-feira e não passou despercebida por quem acompanha a história da América Latina. A socialista Michelle Bachelet, uma pediatra, tomou posse na presidência do Chile e recebeu a faixa da senadora Isabel Allende, também socialista e filha do presidente deposto Salvador Allende. Em 11 de setembro de 1973, pouco mais de 40 anos atrás, Allende se matara no Palacio de la Moneda, acuado pelos militares que, liderados por Augusto Pinochet, imporiam ao país uma das mais cruentas ditaduras latino-americanas. Importante que se diga, a própria Bachelet é filha do general Alberto Bachelet, cuja fidelidade a Allende o levou a ser preso na ditadura, sendo torturado e sofrendo um infarto fulminante em 12 de março de 1974, exatamente 40 anos atrás. Disso se depreendem conclusões:
1) Duas mulheres de acurada visão social ocupam os principais cargos num país onde o conservadorismo e a truculência tiveram espaço e ainda hoje contam com defensores.
2) O mundo, aparentemente, tornou-se mais feminino. Bachelet terá, como colegas latino-americanas, a brasileira Dilma Rousseff, a argentina Cristina Kirchner e a costarriquenha Laura Chinchilla, sem falar nas caribenhas Portia Simpson (Jamaica) e Kamla Persad-Bissessar (Trinidad e Tobago).
- A imagem histórica de duas mulheres ocupando simultaneamente os dois cargos mais importantes do Estado chileno percorrerá o mundo - vangloria-se a filha de Allende, que não é a romancista Isabel Allende, sua prima e autora de A Casa dos Espíritos e Paula.
As mulheres observaram a cena e reconheceram o simbolismo nela contido. Mas relativizaram.
- É importante, na história que tanto tolheu as mulheres. Mas devemos trabalhar em colaboração com os homens - diz Analúcia Danilevicz Pereira, professora de Relações Internacionais da ESPM-RS.
Realmente, a amostra da atividade de presidente não representa o todo. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), das Nações Unidas, as juízas, ministras ou parlamentares ocupam 26% dos cargos na região e 11% dos municípios são administrados por mulheres. Tal é a situação adversa, que a secretária-executiva da Cepal, Alicia Bárcena, incluiu, entre os Objetivos do Milênio, estabelecer "um modelo de desenvolvimento baseado na igualdade entre homens e mulheres e na erradicação de toda forma de discriminação". Vai além a Cepal. Relata que o desemprego na região é de 7,8% entre as mulheres e de 5,9% entre os homens.
A cientista política Deisy Ventura, da Universidade de São Paulo (USP), pondera:
- Falar de uma visão feminina do exercício do poder implicaria o erro de atribuir automaticamente às mulheres que fazem política as qualidades e os defeitos típicos dos papéis sociais que nos foram destinados ao longo da história - alerta Deisy Ventura. - A suposta sensibilidade é um estereótipo que cai por terra diante de perfis como os de Margaret Thatcher (ex-premiê britânica), Angela Merkel (chanceler alemã) ou Helle Thorning-Schmidt (premier dinamarquesa). Parece um elogio mas, em geral, é um rótulo que funciona contra a mulher, associado à fragilidade. Há outros rótulos ainda mais degradantes, como o pretenso charme ou "jeitinho" de resolver problemas, reforçando a ideia de que a mulher não é capaz, ou a ela não deve ser permitido jogar o mesmo jogo do homem - diz ela. - O que me parece mais importante na ascensão de Dilma, Cristina e Bachelet é a perspectiva de que a carreira política, no mais alto plano, seja incorporada ao horizonte de possibilidades e sonhos das mulheres.
Deisy critica o "baixíssimo número de mulheres" em postos de liderança no "espaço público" e diz:
- É inaceitável que alguém não possa progredir em sua carreira política por ser mulher. Também é repulsivo que suas gestões sejam avaliadas sob a lente do machismo. Uma vez eleitas, as mulheres são tão diversas entre si quanto os homens, e essa enorme diversidade é a riqueza da condição humana.
Também na Europa são seis as mulheres governantes, na Alemanha, na Dinamarca, na Eslovênia, em Kosovo, na Lituânia e em San Marino. Na África, quatro (Libéria, Malauí, República Centro-Africana e Senegal). Na Ásia, três: Bangladesh, Coreia e Tailândia. A primeira mulher latino-americana eleita foi a nicaraguense Violeta Chamorro, em 1990. Mas a Argentina foi o primeiro país governado por mulher: Isabelita Perón, em razão da morte do marido, Juan Domingo Perón, de quem era vice.
O retorno da pediatra
Separada e mãe de três filhos, a pediatra Michelle Bachelet exerceu a presidência entre 2006 e 2010 ostentando invejáveis 83% de aprovação popular. Foi a primeira mulher a ocupar o mais alto cargo político do Chile e só não pôde ser reeleita porque a Constituição chilena não prevê o instituto da reeleição imediata - voltar depois, como se viu, é possível.
Curiosamente, Bachelet derrotou outra mulher no segundo turno chileno, Evelyn Matthei, com quase 63% dos votos. Mais curioso ainda: enquanto o pai de Bachelet morreu preso e torturado nas masmorras da ditadura, o pai de sua adversária, general como Alberto Bachelet, dirigiu a Academia de Guerra Aérea e integrou a primeira junta a governar o país no regime de exceção.
Agora na presidência, Bachelet terá de colocar em prática o slogan de campanha, "Chile de todos". Ou seja, atender aos protestos das ruas e implementar a ousada reforma na educação, que depende da reforma tributária e de outra, constitucional. Para os cem primeiros dias de governo, estão previstas 50 medidas a fim de traçar o caminho das reformas. O governo tem maiorias no Congresso para passar a reforma tributária, mas precisará se aliar à oposição e a independentes para aprovar as outras duas.
A vida ensinou Bachelet a enfrentar desafios. Nascida em 29 de setembro de 1951, filha do general Alberto Bachelet e da arqueóloga Ángela Jeria, ela teve de viver e estudar em diversas localidades, como Quintero, Cerro Moreno, Antofagasta, San Bernardo e Santiago. Tudo devido às andanças do seu pai militar, que também viveu nos Estados Unidos, no início dos anos 1960.
Quando o Palacio de la Moneda foi bombardeada e vingou o golpe de Augusto Pinochet, em setembro de 1973, ela viu tudo, apreensiva, do teto da Escola de Medicina, onde estudava. Em decorrência do golpe, viveu dias amargos. Teve o pai preso na Academia da Força Aérea, sob a acusação de "traição à pátria". Depois, ela própria foi encarcerada, em 1975, exilou-se com sua mãe na Austrália e ainda viveu na antiga República Democrática da Alemanha, onde estudou alemão e, em Berlim, continuou a cursar Medicina.
Bachelet retornou ao Chile em 1979 e continuou estudando Medicina em Santiago. Além de espanhol e alemão, domina o francês e o português. Entrou para a vida pública em 2000, quando foi nomeada ministra da Saúde do presidente socialista Ricardo Lagos e, surpreendentemente, dois anos depois, tornou-se ministra da Defesa, no mesmo governo.
Desde que deixou seu primeiro mandato, em 2010, até o início de 2013, quando passou a se dedicar à campanha eleitoral, Bachelet ocupou a chefia da entidade das Nações Unidas encarregada de promover a igualdade de gênero, a ONU Mulheres (criada em 2010). Ao anunciar que teria de renunciar ao cargo, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon expressou "enorme gratidão por seu excelente serviço".
Em comunicado, ele disse: "Michelle Bachelet foi a pessoa certa no lugar certo e na hora certa."
América do Sul
Com posse de Michelle Bachelet no Chile, mulheres ganham mais espaço no poder
Apesar das conquistas, elas ainda lutam contra a discriminação e a falta de igualdade em outros setores
Léo Gerchmann
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