O povoado de Muchelney, na Inglaterra, se transformou em uma ilha. Enquanto carros ficam ociosos, moradores trafegam pela planície inundada ou pegam um barco da polícia para seguir pela estrada recém-transformada em rio que os conecta com o que hoje chamamos de "continente". A cerca da metade do caminho, um Sedan prata aparece na água, com o teto discretamente saliente. O veículo está lá há cinco semanas.
Mesmo para os padrões da Grã-Bretanha, acostumada a estar debaixo d'água, este inverno tem sido particularmente chuvoso. Em várias partes do país, foi o mais chuvoso janeiro já registrado, e a água ainda não parou de cair. Grandes áreas do sul da Inglaterra permanecem em alerta de inundação. Muchelney e o povoado adjacente de Thorney, a cerca de 193 quilômetros ao sudoeste de Londres, estão entre as áreas mais atingidas - apesar de o governo ter levado um tempo para perceber isso.
O pedreiro Roderic Baillie-Grohman, de 57 anos, ficou com água até os joelhos em sua sala de estar recentemente, enquanto examinava o prejuízo, quando o telefone tocou. Era uma mensagem gravada da agência ambiental, o órgão do governo britânico responsável pela gestão de inundações. O alerta de cheias tinha sido divulgado, disse a ele uma voz alegre, enquanto ondas suaves envolviam sua calça de borracha.
- Eu quase comecei a rir - disse Baillie-Grohman ao descrever a cena.
Outras mancadas burocráticas foram menos divertidas. Quando ocorreu a primeira inundação, em 3 de janeiro, foram atingidas não apenas casas, mas também fossas sépticas, impossibilitando dar descarga nos vasos sanitários. As autoridades do governo local levaram três semanas e meia para enviar banheiros químicos portáteis para o povoado, disse Baillie-Grohman.
Até a chegada deles, contou o pedreiro, a população usou "sacolas plásticas". Os chuveiros, já sem aquecimento, passaram a ser racionados, assim como as máquinas de lavar - isto é, aquelas que não haviam sido destruídas pela enchente - cujo uso foi desencorajado para não aumentar o acúmulo de águas no lençol freático.
- Parece que estamos em um acampamento radical - disse sua esposa, Holly Baillie-Grohman, lembrando-se de um jantar certo dia na casa de um vizinho. Eles foram de canoa desde a porta de casa até o portão, pegando a estrada até a porta da sala da frente da casa dos amigos.
O clima, que sempre foi um tema popular aqui, tornou-se um assunto controverso. O primeiro-ministro David Cameron foi questionado recentemente sobre uma linha de apoio às vítimas de inundações que vem cobrando o equivalente a cerca de 65 centavos de dólar por minuto. "Tirando proveito das enchentes", dizia uma manchete do tabloide The Sun, enquanto a capa da revista satírica Private Eye publicou uma paródia com um mergulhador debaixo d'água e a seguinte manchete: "Ministro do Meio Ambiente Visita a Somerset".
Aqui em Somerset Levels, uma vasta faixa de pântanos no sudoeste da Inglaterra, as inundações são uma parte muito importante do folclore e estilo de vida local.
- Sempre houve inundações, mas nada nesse nível - disse Nancy Walker, de 80 anos, a mais antiga moradora nativa de Muchelney.
Trata-se da inundação do século, declararam - mais uma vez - as autoridades.
- Eles disseram que o dilúvio do ano passado era algo que só se vê uma vez na vida, mas este ano está pior - disse Elizabeth Nightingale, médica aposentada que mora no povoado há 34 anos.
Quando o nível da água começou a subir novamente em janeiro, vazando pelas rachaduras do chão de pedra de sua casa e se infiltrando a partir do terraço, ela e o marido ainda não tinham terminado de solicitar o pagamento dos seguros pelos danos do ano passado, no valor de US$ 325 mil. O valor que devem receber, desde então, dobrou, e sua franquia subiu de US$ 1.650 para US$ 26 mil.
Mesmo para os moradores cujas casas não foram inundadas, o isolamento do povoado mais próximo, que já dura mais de um mês, tem sido frustrante. Muchelney não tem lojas próprias, nem escolas, nem consultórios médicos - muito menos um bar.
- Eu não vou a um pub há um mês - suspirou o ex-fazendeiro Robin Board, que hoje é professor de yoga.
Levou uma semana para ser criado um serviço humanitário de barco operado pelos bombeiros e mergulhadores da polícia, mais acostumados a serem deslocados para zonas de desastre distantes.
Agora, a ida ao supermercado mais próximo, que normalmente levava cinco minutos de carro, tornou-se um calvário de uma hora.
O barco tem funcionado apenas até 15h30min, limitando os ilhéus com um toque de recolher e forçando as crianças a saírem da escola 45 minutos mais cedo. Não que elas se importem.
- Eu gosto das enchentes - sorriu Joe Walker, filho de um fazendeiro local.
No geral, porém, os moradores aceitaram a sua sorte com um estoicismo e um humor tipicamente britânicos. Um deles chegou a escrever um boletim de notícias sob o pseudônimo de Darth Wader: "O povoado sulista de Muchelney, em Somerset, separado do continente pelo segundo ano consecutivo, poderá declarar independência do Reino Unido", escreveu ele em sua última edição.
Um anúncio paródico ofereceu o prêmio de uma única bota Wellington "para o mais ineficaz político, agência governamental ou editor de jornal". Ele foi publicado três semanas depois que o The Sun mandou uma de suas modelos de topless que costumam aparecer na página 3 em um bote para "animar" os moradores isolados. A modelo, uma menina de Somerset com o nome de Poppy Rivers, chegou vestindo uma camiseta vermelha apertada com latas de cerveja e cópias do The Sun.
Os moradores não ficaram muito contentes, e Rivers rapidamente deixou o povoado.
Há pouco tempo, Cameron assumiu pessoalmente o controle das iniciativas de emergência, comprometendo-se a injetar US$ 165 mil para reparos dos danos causados pelas inundações e em manutenção em todo o país, prometendo fazer "tudo o que pode ser feito".
Entretanto, o primeiro-ministro, líder do Partido Conservador, que foi confrontado por moradores furiosos quando visitou outro povoado inundado antes do Natal, não chegou a visitar Muchelney. O membro local do parlamento, David Heath, dos Democratas Liberais, e o presidente da agência de meio ambiente, Lord Smith, um colega do Partido Trabalhista, também não passaram por lá.
Há quem atribua a culpa pelas mudanças climáticas e a subida do nível do mar ao clima extremo. Outros dizem que o governo tem que começar a desassorear os rios novamente para abrir mais espaço para a água da chuva. A prática foi abandonada na década de 80 por causa de preocupações de ambientalistas quanto aos danos ecológicos.
Contudo, apesar de toda a falta de atenção de seus políticos, as pessoas aqui falam muito bem da generosidade dos povoados e igrejas vizinhos. Eles mencionam, em particular, Jared Colclough, um motorista de táxi de Taunton, nas proximidades, que trouxe carradas de leite, pão e outros suprimentos nos primeiros dias de enchente.
Recentemente, por um breve momento, o sol apareceu, mas nuvens negras já estavam se apresentando a oeste. Board examinou o céu.
- Parece que vai chover de novo - disse ele.