Batalhando há uma década contra a miséria do Iraque, Hani Jari Hattab montou o que parece um império em seu bairro, incluindo um quiosque de celular, uma loja de computador e um supermercado abastecido com produtos do exterior.
Quando o derramamento de sangue foi reduzido por volta de 2009 - durante uma fase que Hattab chamou de os "anos dourados" -, ele passou a caminhar para casa em vez de ir de carro e a deixar o supermercado aberto após o pôr do sol, sem mais temer a noite.
Porém, o alívio teve fôlego curto. O ano passado foi o mais mortal no Iraque em cinco anos, e a violência acelerou nos últimos meses: mais de 900 pessoas foram mortas somente em janeiro, segundo autoridades iraquianas.
Poucas semanas atrás, um carro-bomba em seu bairro, Shaab, matou os passageiros de um micro-ônibus e destruiu duas das lojas de Hattab, deixando as janelas estilhaçadas na calçada e pondo em risco os ganhos modestos da família.
As pessoas pararam de contabilizar as bombas neste bairro operário, onde a violência declina às vezes desde a invasão norte-americana quase 11 anos atrás, mas sem nunca parar.
A exemplo do resto da cidade, Shaab há muito tempo é prisioneiro de ameaças. Pouca coisa parece ser construída além das barricadas. Poucas pessoas falam em planos, modestos ou grandes, à exceção daqueles que envolvem a partida.
Preservar a rotina parecia ser o melhor que se podia esperar.
- A vida continua - disse Hattab, alguns dias após a explosão, enquanto passava os produtos no caixa do supermercado e se maravilhava com a rapidez com que as pessoas voltavam às ruas depois das bombas, em questão de minutos agora, quando antes levavam dias.
Do lado de fora, a cratera da bomba se encheu com a água lamacenta da chuva e desapareceu em meio ao cenário, mais uma entre a coleção incontável de cicatrizes locais.
- A gente se acostumou a isso - afirmou Hattab.
Localizado no extremo norte de Bagdá, Shaab era basicamente composto de granjas quando o governo começou a construir conjuntos habitacionais para funcionários públicos de classe média décadas atrás. Mecânicos e carpinteiros haviam tomado o lugar dos produtores rurais na época em que os Estados Unidos invadiram o país em março de 2003, quando bombas aliadas caíram aqui certa manhã, matando mais de uma dezena de pessoas no primeiro dos traumas recentes do bairro.
Enquanto o Iraque mergulhava em uma odiosa guerra civil sectária, as milícias xiitas que dominavam o bairro desovavam os corpos das vítimas, perfurados de buracos, nas ruas. A ansiedade fez o lugar crescer. A limpeza sectária que segregou Bagdá lotou Shaab com moradores xiitas em fuga de outras partes do Iraque.
Soldados norte-americanos forraram a rua do mercado central com muros contra explosões para impedir os homens-bombas, e quando isso não funcionou, a via pública, no centro de Shaab, foi fechada ao trânsito, disse Hattab. A rua está aberta novamente, mas talvez não por muito tempo. Quase todo dia, os homens-bombas violam o aparato de segurança, os muros e pontos de controle que deformaram a capital.
As explosões têm como alvo principal bairros xiitas como Shaab, onde já explodiram pelo menos três carros-bombas neste ano.
As rixas políticas do país e a ameaça ressurgente dos jihadistas são a última fonte de violência e ansiedade. Semanas de batalhas sangrentas na província ocidental de Anbar entre o governo e militantes sunitas, incluindo alguns ligados à Al Qaeda, já desalojaram mais de 140 mil pessoas.
A luta se espalhou até Bagdá e outras províncias, estimulando temores de uma conflagração maior e a volta da carnificina intercomunitária do passado.
- Nós perdemos muitos amigos e parentes. Quando iremos superar esse pesadelo? - afirmou Hussain Ali, 33 anos, funcionário público que mora em Shaab, a respeito do auge da guerra civil.
As autoridades iraquianas se gabam de planos ambiciosos para ajudar os redutos batalhadores da cidade, como o Shaab, incluindo novas escolas, conjuntos habitacionais e até mesmo um elegante trem elevado que voltaria a unir a capital dividida. É difícil imaginar tais melhorias contra o emaranhado de fios elétricos acima das lojas danificadas, em ruas inundadas com frequência.
Da tranquila carpintaria de Thamer Abdel Moneim, a vida no bairro parecia ter se detido completamente, depois de um período breve de prosperidade relativa.
- As pessoas estão com medo do que está acontecendo em Anbar. Elas pararam de construir casas por enquanto.
A superlotação ofereceu o único alívio do seu trabalho: os apartamentos subdivididos precisam de novos quartos e portas.
As conversas locais eram cheias de tristeza, refletindo o clima geral. Na televisão iraquiana, comerciais saudando os militares eram exibidos sem parar, preparando o público para a intensificação da guerra contra os militantes. Vídeos que circularam pelo Facebook mostravam jihadistas matando soldados e motoristas de caminhão enquanto gritavam insultos contra os xiitas.
Na carpintaria, onde Abdel Moneim, curdo, trabalhava com colegas de seitas diferentes, havia a convicção de que o Iraque não seria novamente envenenado pela luta interna.
-Nós aprendemos com o que aconteceu - disse um dos funcionários.
O homem-bomba de Shaab de semanas atrás dirigia um Kia prateado. A explosão não pegou por pouco Ali Abdul Mehdi, que trabalha na loja de computadores de Hattab.
- Não sei como eu sobrevivi. Eu estava ali parado. Doze ou trezes pessoas morreram - ele contou, apontando um muro a uns dez metros da cratera. Depois ele assinalou onde o micro-ônibus estava passando.
Ele olhou a fachada estilhaçada da loja de computadores na noite chuvosa. Atrás dele, compradores enchiam o mercado, recusando-se a abandonar as rotinas.
- Depois da explosão, eu comecei do zero. Eu vou reconstruir - afirmou Abdul Mehdi, mais em função do trabalho do que por convicção. Ele queria partir, mas ficou para cuidar dos pais.
- As pessoas continuam como se nada tivesse acontecido. Essa é a pior coisa que pode acontecer na vida: acostumar-se à morte - lamentou Zuhair al-Tamimi, 52 anos, advogado.