No dia seguinte ao da vitória eleitoral de Michelle Bachelet para retornar à presidência do Chile, no quente 16 de dezembro de 2013, o atual governante, Sebastián Piñera, a visitou e, em gesto magnânimo para um adversário, aconselhou-a sobretudo a tirar férias. Parece pouco, mas não é. Bachelet tem, a partir de 11 de março, a missão de colocar em prática um programa urdido por ela própria a partir do grito das ruas indignadas.
E Piñera sabe a força que esse grito tem.
São três passos para atender aos apelos das massas: uma reforma tributária que possibilite a arrecadação de US$ 8,2 bilhões, a implementação do caráter público em especial ao ensino universitário e uma reforma constitucional. Nada fácil. Bachelet até tem maioria na Câmara dos Deputados e no Senado. A Nova Maioria, sua aliança, conta com 67 deputados e 21 senadores, contra 49 e 16 da oposição. Sendo assim, a nova presidente terá de dialogar muito e fazer composições para aprovar os seus projetos.
- Bachelet tem experiência administrativa suficiente para saber o desafio que a espera. É importante ela contar com o Partido Comunista, que liderou muitos protestos. Mas terá de mostrar a que veio nas primeiras semanas - comenta o analista político Sergio Viñas.
Juntando diferenças
A matemática é a seguinte: a futura base parlamentar permite a aprovação da reforma tributária (são necessários 61 votos na Câmara e 20 no Senado). Para a reforma educacional, já começam a surgir problemas. Além de garantir o apoio de democratas-cristãos e comunistas (que integram a base), o governo tentará atrair pelo menos dois dos quatro deputados independentes e mais algum senador aberto a eventual adesão pontual. Por quê? Porque necessitará de 69 deputados e 22 senadores.
O problema mais sério, porém, é a reforma constitucional, que exigirá os votos de 80 deputados e 25 senadores.
Não bastasse isso, apesar de ter deixado o governo em 2010 com 80% de popularidade, a nova presidente pode ser questionada quanto a sua legitimidade. Na primeira eleição presidencial com voto facultativo, 42% dos chilenos inscritos para votar foram às urnas. Como atingiu 62% dos votos, 26% dos eleitores inscritos votaram nela.
Números à parte, outro problema que Bachelet enfrenta é manter a base parlamentar, cujas divergências internas são notórias. A composição é heterogênea: Partido Socialista (da própria Bachelet), Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido pela Democracia, Partido Radical Social-Democrata, Esquerda Cidadã e Movimento Amplo Social. E há ainda mais uma questão, que extrapola a esfera política e penetra nos interesses econômicos. As mineradoras de cobre, principal fonte de divisas chilena (nada menos que um terço das reservas mundiais), não escondem a preocupação com a reforma tributária, que, conforme informações vazadas durante a campanha, levará a alíquotas entre 20% e 25% mais altas. As empresas já estavam sobressaltadas com o fato de seus custos de produção terem dobrado nos últimos cinco anos, por questões trabalhistas e de aumento no preço da energia desde 2010, quando a Argentina, lá com suas dificuldades internas, deixou de fornecer gás para o vizinho.
Enfim, Bachelet que arregace as mangas.
Costura para manter a base
No mesmo dia em que conversou com Piñera, Bachelet se reuniu com líderes de todos os segmentos que compõem sua base parlamentar. Pediu unidade. Comunistas, porém, duvidam que democratas-cristãos aceitem tocar em temas como o aborto (em casos de risco de vida para a mãe, inviabilidade do feto ou estupro) e o casamento gay. Os democratas-cristãos, cuja ponderação é vista como a base da governabilidade, mantêm discurso apaziguador. Até acenam com um apoio ao casamento gay.
Mas o fato é que os protestos estudantis que tomaram as ruas das principais cidades chilenas desde 2011 levaram a socialista a prometer educação gratuita em seis anos, já que no Chile o ensino superior é privado. Esse é o meio pelo qual a nova presidente almeja ganhar as massas e atingir mais igualdade social. Enfim, altíssima prioridade, até porque muitos dos líderes desses protestos esperam com faixas nas mãos e gritos na garganta.
Bachelet esperou até a segunda quinzena de janeiro para anunciar seu ministério. Quis tempo para pensar e o teve. No dia 24, veio a lista. Pela primeira vez desde 1970 (governo Salvador Allende), está ali o Partido Comunista. Para a educação, foi indicado Nicolás Eyzaguirre, economista e ministro da Fazenda na gestão do também socialista Ricardo Lagos (2000-2006). Dentre os 23 ministros, há seis independentes e nove mulheres. As exigências da chefe: que dialoguem de olho nos problemas cotidianos.
- Primeiro, ela terá de administrar expectativas, pois sua agenda é ambiciosa, mexe com questões antigas, e as pessoas demandam mudanças nessas estruturas - comenta o sociólogo Claudio Reyes Barrientos.
Sim, são estruturas que vêm desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e que nem Bachelet, em seu governo anterior (2006-2010) conseguiu mudar. Políticos de esquerda e centro-esquerda (aliados de Bachelet) dizem que, por isso, 1% dos chilenos concentram um terço da riqueza do país, conforme a Universidade do Chile.