O líder partiu, e o mito de que o caos tomaria conta do país desapareceu. Em uma longa jornada de despedidas - sete dias de homenagens em Joanesburgo e Pretória - até o sepultamento, ontem, no vilarejo de Qunu, Nelson Mandela viu a paz ser reafirmada.
As mensagens deixadas pelo ex-presidente estão mais atuais do que nunca e ganham as ruas. Citações e discursos se transformaram em mantras repetidos 24 horas na televisão, estão impressos em cartazes e suvenires. Enquanto o povo se reúne para festejar a vida de Mandela, entoam-se canções de resistência que marcaram o período da clandestinidade de Mandela e os 27 anos de prisão, mesclando com orações. Camisetas com o rosto do líder são escritas até em africâner: "Dankie (obrigado, em africâner), Tata Madiba", como é carinhosamente chamado pelo nome do clã e por ser o "pai da nação".
- Ele é como Jesus para nós agora. Viveu e sofreu pelas pessoas - disse Thoban, um zulu que viajou de oito horas até Qunu e vestia roupas típicas, com couro e pele de animais.
Ontem, foi saudado com jatos em esquadrilha, helicópteros, banda marcial, coral e cantos cristãos, toadas xhosas, e cercado pela família, amigos, celebridades e políticos internacionais, além da geração de líderes de seu partido, o Congresso Nacional Africano (CNA), que o sucederam.
O povoado rural onde Mandela morou dos dois aos 12 anos de idade parou para assistir ao momento histórico por uma transmissão ao vivo em um telão. Sentados, vendo ao longe, do alto, a cúpula da estrutura montada para o dia especial, a população calou-se ao ver o caixão coberto com a bandeira da nova África do Sul sendo colocado em um túmulo rodeado por flores brancas. Como manda a tradição da nação thembu, Mandela foi enterrado ao meio-dia, no quintal de casa. O local é jazigo de três filhos - dois deles, sepultados em Joanesburgo, tiveram, a pedido de Mandela, os restos mortais trasladados a Qunu.
- Vamos sentir falta de sua voz nos ensinando - disse a neta Nandi, que discursou em uma cerimônia conduzida por um bispo metodista, pontuada por ritos xhosas.
Desde que saiu da prisão, Mandela costumava visitar Qunu no Natal. Distribuía presentes para crianças, que se aglomeravam em frente à casa quando viam o helicóptero pousando e a bandeira da casa sendo içada. Fazia caminhadas que costumavam ser intensas no passado, mas que com a idade foram ficando mais curtas. Em novembro de 2012, respirou pela última vez o ar fresco do lugar onde disse ter descoberto que não era livre e que o diálogo e conhecimento são as maiores armas contra a guerra.
DIÁRIO DA ÁFRICA DO SUL | VIVIAN EICHLER
Uma longa caminhada
Aprendi a cantar em 1994 trechos de Nkosi Sikelel iAfrika (Deus Abençoe a África, em xhosa), composto no século 19, mas que então recém fora adotado como hino nacional. Quem me ensinou foram adolescentes negras que conheci em um acampamento de integração promovido por uma organização disposta a desfazer o estranhamento que havia entre cidadãos do país.
Vivi aquele ano em que Mandela assumiu a presidência em famílias inglesas e estudei em escola africâner. Frequentava restaurantes brancos, passeava com brancos. Os negros com quem convivi eram, na maioria, empregados e atendentes - conto nos dedos de uma mão aqueles em posição de destaque com quem conversei.
Fiz algumas aventuras para suprir a lacuna, como uma visita furtiva a uma township (cidades dentro das quais os negros tinham de viver durante o apartheid) ou andar algumas quadras no transporte público negro, as vans. Agora, 19 anos depois, o tempo de vida de Nelson Mandela teve após assumir a presidência, desembarquei no país como se tivesse viajado numa cápsula rumo ao futuro.
O contato entre negros e brancos não é servil. Ou melhor, não é só servil. Eles comandam o país, apesar de a riqueza ainda estar concentrada nas mãos dos brancos. São engenheiros, designers, advogados, empresários, professores. Circulam com desenvoltura, sem desconfiança. Estão conectados com smartphones, tablets, e sua língua (são 11 idiomas oficiais) está por todos os lugares. Os brancos ouvem zulu e xhosa tanto ou mais do que inglês e africâner.
Em Mthata, fui hospedada por uma senhora negra, humilde, que se separou do marido por sofrer violência doméstica. Sem pensão, colocou três dos quatro filhos em universidades, que são pagas, mas contam com bolsas.
Nos seis dias de cobertura do funeral de Mandela, os negros eram os protagonistas, e não poderia ser diferente. Eles cantaram e dançaram refrões como "Tata Madiba, Pai da Nação" durante sete dias de homenagens, velório e sepultamento. E o fizeram com o coração, não só os mais velhos que sofreram na pele o apartheid, mas a geração born-free, ou nascida livre.
Os brancos, embora mais contidos nas cerimônias de massa, também estão de luto. Em Mthata, um homem de 44 anos, africâner, havia esperado duas horas sob o sol quente ao lado do sobrinho de 14 anos para ver o cortejo em homenagem a Mandela passar.
- Somos todos africanos - me disse.
Quase duas décadas depois, o país ainda tem uma longa caminhada, mas já deu um salto para a liberdade, como queria Mandela.
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