> zh.doc: a história do líder símbolo da luta contra o apartheid
No longo funeral de Nelson Mandela, a África do Sul mergulha em seu passado. Os mortos em massacres da era do apartheid ressurgem por todos os lados, e frases do ex-presidente que conciliou o país ecoam lições de conciliação, democracia, honestidade e combate à desigualdade. Os dias a seguir reviverão a Copa do Mundo, a primeira eleição democrática, a libertação após 27 anos de cárcere.
Em meio à catarse, emerge um ponto de interrogação: o culto à memória do símbolo irá pesar na consciência dos herdeiros políticos de Mandela?
- Estou desapontado. Passei minha vida lutando contra o apartheid. Nós estávamos tão otimistas de que iríamos criar uma nova sociedade. Acreditávamos que o CNA (Congresso Nacional Africano, partido de Mandela, há 19 anos no poder) daria início a esta nova sociedade, mas, no lugar disso, há tentativas do governo para reverter liberdades. Experimentamos a stalinização da nossa política, com uma elite corrupta e egocêntrica - lamenta o líder comunitário Colin Smuts, um mestiço, em conversa com Zero Hora, por e-mail. Orgulhoso de ter sido recebido com frequência por Mandela, Smuts dirige um programa que reúne ONGs voltadas para o desenvolvimento de comunidades. Ele lamenta a cooptação dos líderes e a transformação das chamadas townships, as cidades negras da época do apartheid, em favelas cada vez maiores e mais perigosas.
- Ainda por cima, continuo sendo tratado como um mestiço, não simplesmente como um cidadão - acrescenta, referindo-se à política de cotas no serviço público.
O centenário Congresso Nacional Africano (CNA), maior partido do país, pelo qual Mandela pegou em armas, está fraturado e enfraquecido e movimenta a máquina para buscar no ano que vem a quinta eleição consecutiva. O presidente Jacob Zuma, acostumado a driblar escândalos, tenta apagar um novo incêndio. Zuma tem sido alvo de denúncias por ter supostamente investido US$ 2 milhões em recursos dos contribuintes em sua casa de campo, na vila Nkandla, local que não é usado para compromissos oficiais. Com a justificativa de fazer melhorias na segurança, ele teria construído piscina, hall para visitantes, anfiteatro e estábulos. Zuma - que não desiste de tentar emplacar no Congresso uma lei de informação que limita a liberdade de expressão - agora ameaça processar os jornais que publicam fotos da mansão.
- Este é um momento ideal para esquecermos um pouco as preocupações que temos. Vamos para o passado porque o presente está muito mal - analisa Amanda Gouws, professora de Ciências Políticas da Universidade Stellenbosch, coautora do livro Superando a Intolerância na África do Sul.
Partido do líder enfrentará teste
A cientista política avalia que a união em torno da figura de Mandela, mais do que exercer pressão sobre a consciência dos líderes, pode beneficiar Zuma ao facilitar a coesão do partido para as próximas eleições, em abril. Em 2014, o CNA deve enfrentar a oposição de dois novos partidos que crescem alheios à oposição tradicional. Um deles é Agang SA, de Mamphela Ramphele, uma figura da luta anti-apartheid, ex-diretora do Banco Mundial, identificada com a classe média africana como uma dissidente engajada no combate à corrupção. Em outro extremo, está o partido de Julius Malema, que assusta brancos e negros. Expulso do CNA for instigar violência racial, ele sustenta uma plataforma de redistribuição de terras baseada em justiça racial. Na África do Sul, centenas de fazendeiros brancos têm morte violenta todos os anos.
O principal rival que ameaça o legado de Mandela é a corrupção, um dos mais graves problemas de um país no qual 40% da população vivem com menos de US$ 2 por dia, enquanto no topo da pirâmide social há bilionários. Apesar de criticado por não admoestar de forma pública e consistente os sucessores, Mandela deixou reflexões que podem envergonhar seus companheiros. Em uma delas, em 2009, lembrou: "Precisamos nos lembrar de que nossa principal tarefa é garantir uma vida melhor para todos".
A aposta dos sul-africanos que absorveram os princípios de Mandela é de que, mesmo morto, ele renove a construção da nação.
Avanços e retrocessos
- A classe média negra dobrou de 1994 para cá, mas os brancos têm renda, em média, sete vezes maior que os negros.
- O desemprego atinge 29% dos negros e 5,9% dos brancos.
- Os brancos são contrários a sua exclusão quase total do serviço público, já que a prioridade se dá a negros sul-africanos, mestiços, indianos e mulheres, sem cotas.
- Com o fim do apartheid, negros de outros países migraram de forma ilegal para o país, o que instiga violência xenofóbica.
- A origem dos problemas sociais está na herança do regime do apartheid, instituído em 1948.A corrupção é percebida como um dos mais graves problemas do país.
- Nos últimos dois anos, o presidente Jacob Zuma assistiu a greves massivas em setores-chave da economia, como a mineração.