O Portico d'Ottavia é um daqueles trechos de surrealismo urbano que só existem em Roma: de uma cavidade a cerca de seis metros abaixo do nível da rua saem as ruínas de um pórtico imenso de mármore de dois mil anos de idade. Para completar, o domo de uma igreja barroca, a Santa Maria in Campitelli, surge atrás da estrutura como se fosse uma matrona xereta.
A poucos passos do monumento, garçons de várias nacionalidades tentam atrair os turistas para jantar em suas sacadas, em meio a pirâmides de alcachofras. Um pôster na parede de um palácio anuncia sushi kosher. Homens barbudos de quipá empurram estudantes de regata.
Ninguém parece se importar ou notar esse mosaico de épocas e culturas tão diversas porque estão todos ocupados falando, bebendo, apontando, passeando ou beliscando alguma coisa gostosa.
Há 500 anos o Portico d'Ottavia é o centro do gueto judeu de Roma - quatro quarteirões espremidos entre o rio Tibre, a Fonte das Tartarugas, o Teatro de Marcelo e o Palazzo Cenci. Em meio à celebração dos prazeres mundanos de hoje, tive dificuldades para encontrar a pequena placa em homenagem "la spietata caccia agli ebrei", ou "a caçada implacável dos judeus", que aconteceu em 16 de outubro de 1943.
Há quase 70 anos, o mundo estava em guerra, Roma ocupada pelos nazistas e o gueto era uma prisão virtual para grande parte da comunidade judaica da cidade - e, naquela manhã, o capitão da SS Theodor Dannecker ordenou que ela fosse esvaziada.
Em uma noite agradável de abril, pensei naquela época sombria ao lado de minha mulher e nossas duas filhas sentado na sacada do Ba"Ghetto, um restaurante animado perto do pórtico. Lá pelas tantas, uma vela de estrelinhas foi espetada em um pedaço de bolo e todo mundo começou a cantar "Tanti auguri a te" ("Parabéns a você") para uma beldade de vinte e poucos anos.
Impossível não se chocar com o contraste entre o presente festivo e o passado sombrio. Mesmo há doze anos, quando visitei a região pela primeira vez, o bairro dava a impressão de ser isolado e estar às moscas. Os judeus foram confinados a essa área propensa a enchentes em 1555, pelo Papa Paulo IV; em 2001, uma aura de melancolia ainda pairava no ar.
Hoje, porém, o lugar é uma festa. Romanos endinheirados lotam a região "para comer comida judaica". Naquela noite de primavera, com um cabernet israelense brilhando nos copos e os pratos cheios de homus e cuscuz, parecia impossível evocar as sombras do passado.
Nos dois mil anos de história gloriosa (ou nem tanto) da capital, os nove meses da ocupação alemã (de onze de setembro de 1943 a 4 de junho de 1944) não representam mais que um segundo - mas como descobri ao longo da semana que passei papeando com padeiros e arquivistas, curadores e rabinos, taxistas e historiadores, esse segundo permanece vivo.
- As lembranças de Hitler e do fascismo continuam vívidas. A ferida ainda não cicatrizou - conta Alessandra di Castro, diretora do Museu Judaico de Roma.
Foi bom saber disso antes de refrescar a memória. Roma e Berlim, é claro, estavam lado a lado na Segunda Guerra Mundial - mas quando os Aliados tomaram a Sicília, em julho de 1943, e começaram a se preparar para uma invasão à Itália continental, o Eixo Fascista entrou em colapso. Mussolini foi deposto e o fraco governo que o substituiu começou a negociar um armistício em segredo.
Os nazistas, porém, não tinham a mínima intenção de permitir que a Itália ficasse neutra. Quando o armistício foi anunciado, em oito de setembro, o exército alemão se adiantou para desarmar os soldados italianos e garantir posições no país. A Roma não restou outra coisa a fazer a não ser esperar sua aproximação.
Em dez de setembro, um grupo de soldados e civis fez uma tentativa desesperada de defesa na Porta San Paolo. A batalha, que durou todo o dia, aconteceu na frente das torres gêmeas do portão, embaixo da Pirâmide de Céstio, que se ergue sobre o Cemitério Protestante, onde estão Keats e Shelley. No fim, 597 soldados e civis italianos, incluindo 27 mulheres, morreram defendendo a cidade, mas, à noite, os alemães tinham vencido.
Perguntei aos vendedores da lojinha de souvenirs dentro do cemitério se sabiam onde a batalha tinha sido travada e um deles me ensinou como chegar ao Parco della Resistenza dell'8 Settembre, que ficava ali perto. Caminhei pelo parque meio mal cuidado, passei por pais brincando com seus filhos à sombra de palmeira e plátanos, mas tirando a placa em homenagem "aos soldados de todas as unidades e cidadãos de todas as classes que lutaram contra os invasores alemães", pouco vi que lembrasse o confronto.
O sol já se punha quando passei pela Porta San Paolo e caí no trânsito caótico da Piazza dei Partigiani, um dos principais pontos de conexão do transporte público, ao lado da Cidade Velha. Ali peguei o bondinho para o bairro de San Lorenzo, bairro operário a pouco menos de 5 km do gueto.
Em 19 de julho de 1943, logo depois da queda de Mussolini, os Aliados bombardearam a área porque queriam acabar com um importante ponto da malha ferroviária. O resultado foi que de dois a três mil civis morreram e uma das bombas danificou a bela Basílica de San Lorenzo Fuori le Mura, que possui partes que remontam do século V.
O bondinho passou ao lado dos arcos da Porta Maggiore rumo aos quarteirões feios e sombrios - mas supostamente valorizados - próximos ao complexo da Universidade de Roma. Minha parada ficava perto de um estacionamento moderno. Eu estava prestes a olhar o mapa de novo quando vi o campanário de tijolos do século XII da San Lorenzo se erguendo contra uma fileira de castanheiros-da-Índia. A porta da igreja se fechou atrás de mim e, de repente, o mundo moderno deixou de existir.
Eu estava perto da clausura quando vi algo que me marcou: entre as belas colunas e arbustos de mirra e outras ervas, eu me deparei com um fragmento de bomba retirado de uma pilha de destroços, em 1943 - um estilhaço de aço norte-americano totalmente deslocado em um jardim romano sagrado.
Nos dias que se seguiram, perguntei a vários italianos se os romanos guardavam alguma mágoa em relação aos EUA sobre as consequências do ocorrido em San Lorenzo e a resposta foi sempre a mesma: todos se mostravam agradecidos porque os livramos dos nazistas.
Já quase no fim da viagem, voltei para sentir mais uma vez o clima do lugar 70 anos depois de um sofrimento que vai além de qualquer compreensão.
Naquela tarde ensolarada, os cafés estavam lotados; grupos de turistas experimentavam fast-food kosher e queijos e biscoitos artesanais; norte-americanos, israelenses e alemães faziam fila para a revista antes de entrarem no Museu Judaico.
Apesar de tudo, não pude deixar de sentir um clima de tristeza e ansiedade. Na esquina, a Boccione, que nem tem placa, mas é um verdadeiro monumento há dois séculos; lá dentro, a proprietária, Bianca Sonnino, cortou uma fatia extragrande de "pizza ebraica" - que de pizza não tem nada porque a textura é de pão-de-ló - e me explicou, orgulhosa, que a padaria está na família há várias gerações.
Quando perguntei da guerra, ela chorou e contou que uma senhora bondosa acolheu e escondeu sua família, mas vários parentes próximos foram levados para Auschwitz para nunca mais voltar.
- Depois da guerra, o gueto ficou vazio. Virou uma zona morta.
Agora alguns moradores temem que a área esteja se tornando animada demais. A valorização imobiliária elevou os preços dos apartamentos, muito além das possibilidades da maioria das famílias que vivem ali há séculos, às vezes, mais de um milênio.
Daqui a poucos anos, os últimos sobreviventes da ocupação nazista terão morrido e os eventos daqueles nove meses terríveis serão apenas mais um detalhe na história de Roma - mas, por enquanto, em meio ao clamor alegre do gueto, suas vozes ainda podem ser ouvidas.