Aninhada à sombra da pitoresca cordilheira sulista Macgillycuddy's Reeks, onde ficam os três picos mais altos da Irlanda, Kilgarvan é pouco mais do que um pontinho que pode se perder num piscar de olhos em uma estrada movimentada entre as cidades turísticas de Killarney e Kenmare: uma única rua, um amontoado de casas, uma loja, dois bares, uma igreja e um cemitério. Mas ela se tornou o centro de um frenesi midiático internacional neste inverno, quando a câmara municipal votou a favor da legalização de dirigir embriagado.
Ao menos, esse foi o modo como o caso foi retratado. O que a câmara do condado de Kerry fez, na verdade, foi aprovar uma moção para que pessoas que moram em áreas rurais tenham permissão de tomar algumas poucas cervejas antes de voltar para casa dirigindo.
A medida foi proposta por Danny Healy-Rae, político e dono de um pub local, com a intenção de resolver dois problemas de uma só vez: o declínio da cultura dos pubs e o isolamento da vida rural, particularmente para os moradores mais velhos.
A moção de Healy-Rae pediu justiça ao ministro para permitir que a polícia "emita licenças para pessoas que moram em áreas rurais isoladas permitindo que elas voltem para casa dirigindo dos pubs mais próximos depois de tomar dois ou três drinques, em estradas pouco usadas e dirigindo a velocidades muito baixas".
Ele argumenta que isso ajudaria a combater o isolamento e até mesmo diminuiria o risco de suicídio.
Rivais políticos, no entanto, rotularam-na como uma façanha vazia e populista. Mas o fato de ter sido aprovada de qualquer modo e amplamente considerada como ganhadora de votos em potencial revela a complexa influência que o álcool ainda exerce em vários aspectos da vida irlandesa.
Isso pôde ser visto aqui, recentemente, num início de tarde, conforme alguns dos rapazes locais curtiam umas cervejas no pub da família Healy-Rae. Eles apoiavam a moção. A maioria estava disposta a falar a questão apenas anonimamente. Bares rurais irlandeses podem ser lugares de muito falatório, onde o lubrificante das bebidas incentiva as conversas, mas também tende a instigar uma desconfiança inerente para com forasteiros intrometidos.
John, um pedreiro aposentado que passou a maior parte da vida trabalhando na Inglaterra, nunca se casou de novo após a morte da esposa, mais de 30 anos atrás. Seus filhos adultos moram na Inglaterra, e ele fica sozinho a maior parte do ano. Ele descreve o pub como "uma ótima desculpa para sair de casa".
"Eu não ia beber todo dia ou coisa parecida, mas me dá uma força tomar duas doses e talvez encontrar alguns amigos e escutar o que está acontecendo no mundo", disse ele.
Ele não teria receio em dirigir de volta para casa depois de umas duas cervejas, além do medo de ser parado e perder sua carteira de motorista, que ele descreve como sua salva-vidas. Como é muito longe para caminhar, ele depende de um vizinho que não toma bebidas alcoólicas para levá-lo e buscá-lo no pub.
Muitos bares na Irlanda foram modernizados e atualizados durante os anos do Tigre Celta (período do boom econômico na Irlanda) para deixá-los mais atraentes para o público feminino e para atrair clientes jovens, mas o Healy-Rae definitivamente não está entre eles. O balcão laminado baixo, o chão de pedra e os bancos metálicos altos com quatro pernas são recordações de uma época em que tais lugares eram refúgios masculinos.
Desde que essa moção foi aprovada, o pub recebeu equipes de filmagem de dentro e de fora de toda Europa,
e Healy-Rae continua firme apesar da avalanche de críticas de políticos, das autoridades de segurança rodoviária e de muitas pessoas que perderam entes queridos por causa de motoristas bêbados.
"Não estou defendendo o tipo de indivíduos que causam acidentes nas nossas estradas", disse ele em uma resposta bastante ensaiada.
"Estou falando sobre, principalmente, os idosos que moram em lugares muito remotos e que vão à cidade para fazer algumas compras, aproveitar algumas doses e conversar com os amigos e depois voltar para casa dirigindo a menos de 50 km/h", disse ele. "Não são essas pessoas que causam os acidentes. Qual é a alternativa para eles em um lugar onde não existe transporte público ou de nenhum outro tipo? Ficar em casa sozinho, olhando para as quatro paredes?"
Outro membro da câmara do condado de Kerry, Toireasa Ferris, que não estava presente quando a medida foi aprovada porque seu filho estava doente, disse ter ficado "passada" quando ouviu o resultado e teme que o conselho agora seja considerado "uma piada". Ela também acredita que o isolamento rural seja um problema sério, mas ela diz que ele foi obscurecido ao promoverem o ato de dirigir embriagado como parte da solução.
"Nunca, nos meus sonhos mais loucos, eu pensei que ela seria aprovada", disse ela. "Este não é o jeito de tratar o problema. Algumas pessoas de gerações passadas que estavam acostumadas a tomar algumas doses e voltar dirigindo para casa ainda podem achar aceitável, e eles podem estar perdidos para nós. Mas nós precisamos quebrar o elo entre socializar e beber para as gerações futuras."
Des Bishop, um comediante que nasceu nos Estados Unidos mas passou a maior parte da vida na Irlanda, está na vanguarda de um movimento livre, mas com voz, que diz que bebedeiras compulsivas em particular encorajaram os irlandeses a se aproveitarem de um estereótipo ultrapassado. Ele argumenta que a Irlanda precisa mudar suas atitudes em relação ao ato de beber antes de poder esperar que o mundo a considere de outro jeito.
"Sempre haverá o absurdo que vimos em Kerry que dá uma ótima manchete ao redor do mundo, então precisamos achar meios de mudar a história que está sendo contada", disse ele.
Enquanto isso, a narrativa continua muito familiar.
Poucos outros países têm uma identidade de laços tão fortes com o álcool. A cerveja Guinness continua sendo praticamente um símbolo nacional, apesar de pertencer ao conglomerado internacional Diageo. Sucessivos governos têm feito alardes oficiais sobre combater a centralidade da bebida na vida social irlandesa, enquanto empurram um copo de cerveja nas mãos de praticamente todos os dignitários estrangeiros que chegam ao país.
Há algumas indicações de que o caso de amor ainda siga seu caminho. Uma pesquisa publicada recentemente por um economista da Universidade da Cidade de Dublin descobriu que o consumo global de álcool por volume caiu 20 por cento durante a última década.
Entretanto, analistas apontam que isso simplesmente reflete uma população que está mais pobre e mais velha, ao invés de mais sábia. Um relatório de abril de 2010 da Comissão Europeia sobre as atitudes em relação ao álcool descobriu que a Irlanda tinha o maior número de bebedores compulsivos entre os 15 países pesquisados, e há pouquíssimos motivos para pensar que isso mudou desde então.
The New York Times
Proposta que permite consumo de bebida alcoólica antes de dirigir gera tensão na Irlanda
Câmara municipal de Kilgarvan aprovou proposta que libera moradores de zonas rurais de beber cerveja antes de dirigir
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