As garotas da família Salikhov vivem na fronteira do país. A estrada é de terra, pontilhada de poças e ovelhas, e sua casa não dispõe nem de encanamento nem de água encanada. Elas achavam que neste ano as autoridades fariam a ligação de gás natural.
Em vez disso, elas se encontram no meio de um debate sobre religião na Rússia.
Quando a direção da escola local, no extremo leste da escassamente povoada região de Stavropol, anunciou que garotas com véus muçulmanos não poderiam entrar em escolas públicas, a família Salikhov teve de fazer mudanças.
Raifat, 15 anos, chorou ao saber que seria enviada ao vizinho Daguestão. Sua sobrinha, Amina, 10 anos, começou a ter aulas particulares com um professor em vez de frequentar a aula na escola primária local. A irmã de Amina, Aisha, de cinco anos, não sabe que sua vida mudou. Numa manhã recente, ela estava sentada à mesa da cozinha e tentava colorir dentro das linhas do desenho.
A proibição dos véus levada a cabo por Stavropol - a primeira restrição ampla a ser imposta por uma região na federação russa - está sendo questionada nos tribunais. A atitude nasceu em meio a tensões étnicas que vêm confrontando o Kremlin com um problema: o presidente russo, Vladimir V. Putin, teve sucesso em controlar a violência separatista no norte do Cáucaso em parte pela concessão de subsídios e ampla autonomia às regiões predominantemente muçulmanas. Porém, agora o Kremlin precisa lidar com o ressentimento crescente em regiões onde predomina a etnia russa, como Stavropol, situada no limite da cordilheira do Cáucaso.
Quando a severa diretora russa de uma escola num destes vilarejos pobres disse que não mais aceitaria garotas de véu, ela se tornou uma heroína para muitas pessoas em Stavropol. Os líderes da região a apoiaram, adotando um uniforme que não permite nenhum tipo de cobertura na cabeça das meninas; a restrição afeta uma população de cerca de 2,7 milhões. Segundo estatísticas oficiais, aproximadamente dez por cento dos residentes são muçulmanos, embora o número verdadeiro possa ser o dobro por conta da migração não registrada, garante o International Crisis Group.
Ali Salikhov, pai de Amina, afirmou que não será amedrontado e levado a relaxar sua visão quanto ao véu.
"Se pensam que porque alguma coisa acontecerá à minha família eu vou esquecer minha religião, garanto que não, a religião é o objetivo da minha vida. Durante 70 anos, nos ensinaram que Deus não existia, mas isso terminou e isto também passará. Daqui a 20 anos, vão se esquecer de que os véus um dia foram proibidos na Rússia."
Existem pessoas influentes do lado de Salikhov. Um advogado famoso da vizinha Chechênia aceitou representar quatro pais de filhas agora excluídas da escola, argumentando que sob a lei russa somente as autoridades federais podem restringir o direito constitucional de liberdade religiosa.
O advogado, Murad Musayev, afirmou ver a proibição de Stavropol como uma tentativa de acirrar a tensão entre grupos que vivem juntos pacificamente, talvez com o intento de estabelecer a região a leste da cidade como fronteira étnica.
"Quando discutimos o aspecto social do problema com os véus, um de nossos adversários falou: 'Deixem essa gente voltar à sua terra natal histórica, à sua terra do véu e que usem os véus por lá'. Essa é uma opinião muito comum na Rússia."
Para começo de conversa, é raro ver véus nesta região, o que pode explicar por que Marina Savchenko, diretora da escola número 12, na vila de Kara-Tyube, decidiu bater o pé.
Pessoas de etnia russa vêm deixando as estepes há anos, principalmente por motivos econômicos, da mesma forma que os jovens do grupo étnico nogai, que pratica uma forma moderada do islã. Os nogais estão sendo substituído por daguestaneses, mais conservadores, embora somente algumas garotas de alguns vilarejos usem véus na escola.
Contudo, com o crescimento do sentimento conservador a favor da igreja na Rússia, os noticiários nacionais destacaram a história de Stavropol, mostrando um administrador levando uma criança de véu de volta ao ônibus da escola e a despachando de volta para casa.
"Esta é uma instituição. Roupas seculares devem ser usadas aqui, algo formal", Savchenko declarou a uma equipe de televisão. "Só isso. Não é um assunto a ser discutido."
Ela foi saudada por autoridades em Stavropol, com 81 por cento da população formada por russos e ainda considerada por muitos como território cossaco tradicional. Quando Savchenko relatou ter recebido telefonemas ameaçadores do Daguestão, organizações nacionalistas se ofereceram para lhe fornecer segurança. Logo depois, ela deixou a vila.
Contudo, sua posição já tomou proporções nacionais, a tal ponto que o próprio Putin tratou do assunto na tradicional sessão de perguntas e respostas transmitida pela televisão, em dezembro. Ele ficou do lado da diretora.
"Não existem véus em nossa cultura, e quando digo 'nossa', me refiro ao nosso islã tradicional", afirmou Putin. "Estadistas autoritários no mundo islâmico também afirmam que isto não deveria ser feito. Vamos adotar tradições estrangeiras? Por que agiríamos assim?"
A decisão ecoou pelos grupos étnicos muçulmanos, incluindo os que nunca adotaram o véu. Anvar Suyunov, nogai de Kara-Tyube, disse que a decisão tocou "uma questão muito complicada de autodeterminação", a qual poderia se mostrar perigosamente desagregadora.
"É uma ideia burra porque eles podem dividir o país ao meio. Toda ação tem uma reação."
Na casa da família Salikhov, os homens também a debatiam, sentados em almofadas no chão. Ali Salikhov recordou-se das conversas estranhas ocorridas durante o outono do Hemisfério Norte, quando administradores falaram que a proibição era uma medida de segurança. Falaram que se agarrassem o véu de Amina, ela poderia ser esganada.
Salikhov, cujos pais se mudaram para o vilarejo durante o período soviético, disse não considerar o "excesso de conhecimento" necessário para uma muçulmana que, no fim das contas, "será a dona de casa de seu marido". Porém, ele se sentiu irritado ao enviar a irmã de 15 anos, Raifat, ao Daguestão, onde os véus são permitidos, mas a qualidade do ensino é pior. Segundo ele, sua irmã venceu uma olimpíada acadêmica.
"Ela não queria ir", afirmou na cozinha a esposa, Maryam Salikhova. "Ela estava triste, e as outras meninas também estavam. Elas falaram: 'Fique aqui conosco'. Mas ela já está crescida. Ela não poderia tirá-lo nem sequer em casa." Salikhova suspirou.
The New York Times
Proibição de véu muçulmano eleva tensão em região russa
Garotas se encontram em meio a debate sobre religião no país
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