Em meio à estática do rádio portátil, o combatente talibã podia ser ouvido gritando com os colegas, desafiando-os a atacar a partir dos esconderijos nas montanhas e matar as forças infiéis reunidas nas proximidades.
Ao escutar a comunicação em canal aberto do inimigo, um troncudo comandante da Polícia de Fronteira afegã riu e decidiu agitar as coisas.
"Se você for homem, não precisa gritar", o comandante falou pelo rádio, enquanto um círculo de soldados do exército afegão ria. "Por que você não aparece, seu ladrão, e vem nos enfrentar cara a cara? Em que caverna está escondido?"
Surpreso, o insurgente na outra ponta deixou escapar: "Sou forte com o amor de Deus! Eu vou para o paraíso".
"Geralmente, asnos não entram no paraíso", o comandante respondeu, passando a mão na barba tingida de hena e gerando nova rodada de gargalhadas.
À medida que os afegãos começaram a assumir a liderança das forças dos Estados Unidos neste ano, cada missão assumida pelo novo Exército Nacional Afegão chega mais perto de responder questões críticas a respeito do destino do país. Será que as forças afegãs podem realmente combater os talibãs depois que os norte-americanos tiverem partido? E será que podem conquistar o apoio dos líderes locais e dos moradores, tão fundamental para essa luta?
Os desafios ganharam destaque no fim de semana pela batalha dispersa e contínua entre forças afegãs e um baluarte talibã, um indício de que a temporada de combates recomeçara para valer. A batalha somente terminou depois que as forças norte-americanas nos arredores solicitaram um ataque aéreo sobre a casa do comandante talibã, matando a ele e diversos civis, incluindo pelo menos dez crianças.
Há poucas semanas, uma unidade do exército afegão na província de Kunar apresentou diferenças marcantes em relação ao estilo de guerra dos EUA. Embora a unidade tenha em geral se saído bem em combate, os desafios logísticos e políticos eram evidentes.
A operação em Kunar foi caracterizada pelos comandantes militares dos dois países como uma das maiores do gênero na área: uma missão de busca e libertação centrada no vilarejo de Damdara, no Vale Ganjgal, famoso bastião talibã onde uma emboscada insurgente matou nove afegãos e quatro consultores dos Fuzileiros Navais dos EUA em 2009. Desta vez, nenhum norte-americano estará à vista em qualquer uma das etapas.
Em vez disso, a Segunda Brigada do 201º Corpo Afegão, considerada uma das melhores unidades do exército, liderava o ataque. Os comandantes do exército atuaram em conjunto com várias agências de inteligência e da polícia, além de autoridades civis, passando quase uma semana em missões de reconhecimento e desenhando modelos elaborados do terreno em preparação para a missão.
O terreno desempenharia um papel importante nesse dia. O Vale Ganjgal é pitoresco, mas traiçoeiro, com altos espinhaços dispostos em ferradura ao redor da vila, perfeito para proteger emboscadas, e cercado pelas colinas que levam a montanhas e campos escalonados, de terra seca e quebradiça, com pequenos brotos verdes surgindo em meio ao solo rochoso. Pedras cobrem a base do vale como o leito de um rio.
Mais de 350 membros da força de segurança afegã se reuniram ao redor do perímetro, alguns com a tarefa de revistar o vilarejo em busca de combatentes e armas, enquanto outros avançaram pelo terreno para enfrentar emboscadas visíveis.
Não foi preciso esperar muito tempo. As forças nos montes logo foram alvejadas a partir de outro cume na direção noroeste, oposta à vila - o único ponto ainda não controlado pelo exército. Dezenas de combatentes atiravam.
Os soldados responderam com veículos equipados com armas. Uma equipe acionou a artilharia no flanco montanhoso dos insurgentes com precisão variada, fazendo nuvens de fumaça subirem na direção do céu claro. O ritmo da batalha a longa distância se manteve, com tiros menos frequentes enquanto cada lado se esforçava para localizar inimigos nos morros separados por cerca de um quilômetro.
Foi durante esse impasse que a guerra de palavras aconteceu por meio do rádio talibã. Enquanto os soldados afegãos se aproximavam para ouvir, a conversa entre os dois inimigos foi ficando cada vez mais insultuosa e ressentida.
O insurgente chamou o comandante de "escravo dos infiéis".
"Você nem sequer usava calça comprida quando eu já era um bom muçulmano e 'mujahidin'", o comandante retrucou. "Você é um escravo dos punjabis", ele acrescentou, em referência ao apoio paquistanês ao talibã. "Onde conseguiu sua munição, seu jumento? Você tem uma fábrica de munição aqui em cima?"
Ao longo do dia, uma fila de moradores serpenteava
pelo vale para se reunir com representantes do governo afegão.
O governador do distrito, Mohammad Hanif Khairkhwa, se desculpou por incomodá-los e perguntou se as forças afegãs haviam maltratado alguém. Acocorados e enrolados em xales cor de terra, os moradores responderam que não.
O governo já tentou antes conquistar o apoio dado ao talibã aqui, com sucesso modesto. Agora, ao defender seu ponto de vista, Khairkhwa mencionou suas semelhanças, falando de afegão para afegão e citando a ausência de forças norte-americanas como uma nova chance de cooperação.
"Nós somos do mesmo país, da mesma região, falamos a mesma língua e temos a mesma fé. Estão vendo estrangeiros aqui? Somos apenas nós."
Prometendo que as forças afegãs voltariam a visitar o vale, o governador os deixou com um alerta: "Digam aos insurgentes: 'Não atirem da minha casa'. Digam-lhes: 'Não coloquem minas perto da minha casa'. Se não disserem isso, da próxima vez não poderão reclamar do que acontecer".
Os moradores caminharam de volta à vila, uma série de casas de barro que pareciam ter sido entalhadas na terra.
Um velho com olhos azuis profundos e barba branca rala começou a resmungar enquanto capengava. "Se as pessoas do governo nos incomodarem, terão de responder por isso a Deus."
Ao entreouvir o comentário, um agente da inteligência fuzilou: "Acha que estamos incomodando vocês? Quem você acha que atira em nós todos aqui? Se atirarem em um de nós, Deus vai mandá-lo para o inferno".
No fundo do vale, uma fileira de Humvees nas proximidades da frente de combate disparava rajadas de balas no flanco da montanha ocupado pelo inimigo. Escondido na densa floresta acima, um franco-atirador talibã disparava um tiro por vez nas tropas na parte baixa do vale. O vilarejo continuava adormecido.
"Atiram em nós feito ladrões, então temos de responder com força", disse o sargento Hedyatullah Tanha, 22 anos, comandante de pelotão. "Se não respondermos à bala, eles terão muito tempo para preparar outro tiro."
O capitão Wahidullah Atifi, comandante da companhia, disse que o combate constante afiou os homens, enquanto veículos blindados e treinamento extra aumentaram sua confiança.
"O único mau hábito da minha unidade é responder a um único tiro com uma saraivada de balas."
Em meio ao barulho dos tiros, tocou o celular de Atifi. Um superior pedia para impedir que seus homens atirassem tanto.
Atifi deu de ombros e fez um comentário cada vez mais comum entre os comandantes afegãos enquanto ponderam sobre as batalhas futuras sem o suporte aéreo norte-americano. "Se tivéssemos um helicóptero de ataque, a luta terminaria logo."
Na verdade, se as coisas não tivessem sido tão abruptas, a luta talvez nem tivesse ocorrido. O comandante do batalhão do exército desprezou planos anteriores para uma unidade especial tomar o cume que depois veio a se tornar o baluarte talibã.
A comunicação também se revelou um obstáculo. As forças afegãs, incluindo a polícia de fronteira, nacional e local, usavam rádios diferentes, impossibilitando a comunicação. Para compensar, todos utilizam celulares.
À 13h30, terminou a revista na vila, concluída com a descoberta de um punhado de munição calibre 50 no chão da casa de um idoso.
Os soldados começaram a descer para o vilarejo. Como planejado, quem estava ao longo do cume começou a deixar as posições e descer a montanha, um cobrindo a saída do outro. Após horas de combates esporádicos, todos estavam vivos e presentes, afirmaram os oficiais.
Então, irrompeu o tiroteio enquanto o talibã explorava sua vulnerabilidade.
Logo depois que os soldados abandonaram o terreno elevado, os insurgentes entraram nas posições vagas e começaram a atirar num grupo de soldados, agora pegos entre duas linhas de fogo.
Uma dúzia de homens se acomodou em quatro Humvees e desceu correndo pelo caminho acidentado de terra até a base da montanha, esperando deter o ataque inimigo por tempo suficiente para libertar os soldados. O som dos tiros foi ficando mais intenso, ecoando pelo vale em pequenos estalos.
Vinte minutos depois, o comboio reapareceu, trazendo os soldados encurralados, todos vivos. Balas do talibã passavam assobiando por campos próximos, levantando pequenas nuvens de poeira.
Enquanto os homens começavam a carregar os veículos para ir embora, o vilarejo adormecido acordou. Clarões de disparo começaram a se acender nas sombrias janelas de barro, disparando no comboio em retirada até que ele saísse do vale e pegasse a estrada de volta à base.
The New York Times
Em meio à saída dos Estados Unidos, afegãos aprendem a se virar sozinhos
Exército Nacional começa a assumir a liderança das forças norte-americanas
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