Quando o papa Bento XVI, na última quarta-feira, usou o Evangelho segundo Mateus para criticar o que define como "hipocrisia religiosa", "individualismos" e "vaidades" no interior da Igreja, provavelmente o impacto de tais palavras só não tenha sido maior porque as pessoas ainda estavam sob efeito da surpreendente renúncia que ele anunciara dois dias antes.
Nada poderia ser mais importante que a renúncia em si, mas a denúncia de hipocrisia por conta do "comportamento que quer aparecer, a atitude que busca aplauso e aprovação" soa como uma explicação, a de que por trás de tantas palavras há uma disputa nas entranhas do Vaticano. Não um confronto entre visões ideológicas mais ou menos conservadoras, mas simples e puramente desavenças por espaço, prestígio e, sobretudo, poder.
Com problemas cardíacos e idade avançada, é natural a justificativa papal sobre as forças físicas que lhe faltam. Grande parte dos analistas, porém, combina essa fragilidade do corpo à necessidade de ter energia para enfrentar intrigas internas. E o comportamento de que Bento XVI se queixou na sua última homilia induz a especulações de fundo político, especialmente por ter afirmado que "o rosto da Igreja é, às vezes, deturpado pela divisão no corpo eclesial".
Se para consumo externo a renúncia do Papa surpreendeu, para muitos dos 117 cardeais esse momento era esperado havia dois ou três anos. Em março de 2010, quase três anos atrás, Bento XVI fez a seguinte declaração ao jornalista alemão Peter Seewald:
- Se o Papa chega a reconhecer com clareza que já não pode exercer seu ofício, ele tem o direito e, em determinadas circunstâncias, também tem o dever de renunciar.
Na época, foi uma entre tantas declarações do pontífice, mais parecendo um conceito aleatório. Hoje, a releitura dessa entrevista mostra que a decisão vinha sendo fermentada desde então. Escândalos ocorridos dentro da Santa Sé e o isolamento político do Papa o teriam levado à decisão extrema de renunciar, depois de muita meditação a respeito.
Haveria, no Vaticano, um governo paralelo ao do Papa, sob o comando do cardeal Tarcisio Bertone, que administrará a Santa Sé até a escolha do novo pontífice. Secretário de Estado, salesiano influente, apaixonado por futebol, hábil nas relações sociais e espécie de primeiro-ministro cada vez mais poderoso, Bertone foi o número 2 de Ratzinger quando este comandou a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga Inquisição, e, no atual papado, afastou inimigos metodicamente, à revelia de Bento XVI. Com a renúncia de Joseph Ratzinger, vaticanistas já especulam que aí está, nesse poder paralelo que esvazia o do Papa, uma explicação para sua escolha como pontífice, oito anos atrás: cara fechada, quase 80 anos, teólogo com visão conservadora, formação rigorosa e pendor para a disciplina, seria o homem certo para tomar as rédeas.
- Basta ler as palavras que ele disse na homilia de quarta-feira para entender o que está ocorrendo. Nada pode ser mais claro. Sempre houve uma disputa de poder, mas ficou mais intenso no período de Bento XVI. Ele foi escolhido para fazer uma limpeza, que nada tem a ver com linha ideológica, até porque a maioria dos cardeais tem uma linha conservadora. Quando ele viu que teria de bater de frente com alguns interesses, percebeu que não poderia continuar - especula o frei Jorge Hartmann, que durante mais de três anos trabalhou na Rádio do Vaticano.
A cartada política
Essa visão moralizante faz do gesto da renúncia algo maior que a demonstração de humanidade. Também foi uma cartada do Papa para que uma crise obrigue a Igreja a resolver seus problemas internos. Um ato extremo.
- O que ele fez foi por amor à Igreja, isso fica cada vez mais claro. Deixou o Espírito Santo escolher alguém com mais vigor para enfrentar tantos problemas internos a ser resolvidos - analisa o frei Hartmann.
E quais são esses problemas? Talvez o mais conhecido seja o escândalo que ficou conhecido como Vatileaks (numa referência ao WikiLeaks), em janeiro de 2012, quando a rede de TV italiana A7 divulgou cartas enviadas pelo cardeal Carlo María Viganò, responsável pelas licitações, a Bento XVI, nas quais denunciava "corrupção, prevaricação e má gestão" na administração vaticana. Resultado: Bertone, sobre quem recaíam suspeitas de fazer vista grossa, não teria gostado, forçando Viganò, que tinha como meta declarada acabar com a corrupção, o nepotismo e os contratos com preços inflacionados, a ir para Washington, transferido como se recebesse uma promoção.
Apoio ao mordomo
Em maio, centenas de novos documentos secretos se tornaram públicos com o livro Sua Santidade - As Cartas Secretas de Bento 16, do jornalista Gianluigi Nuzzi, relatando complôs e intrigas no Vaticano. Também vieram à tona documentos que mostram confrontos travados sobre o problema do Banco do Vaticano em cumprir normas internacionais de transparência. O presidente do banco, Ettore Gotti Tedeschi, foi afastado do cargo, e as acusações de vazamento dos documentos recaíram sobre o mordomo de Bento XVI, Paolo Gabriele. O mordomo confessou o roubo de documentos, sob o argumento de que "queria provocar um choque para colocar a igreja no bom caminho".
Não deixa de guardar certa lógica com os pronunciamentos críticos do Papa nos últimos dias, posteriores ao anúncio de renúncia. O mordomo foi condenado a 18 meses de prisão por um tribunal do Vaticano. Mas, em dezembro, o próprio Bento XVI anunciou seu indulto, dando uma demonstração de concordância com o tal "choque".
- Posso afiançar que a renúncia do Papa não é problema de saúde, não é problema de marca-passo, não é problema de nada. É uma luta interna que ocorre na Igreja - assegura o vaticanólogo Giancarlo Nardi.
Sob pressão, ele chorou
A missão de conduzir a limpeza na Igreja se viu frustrada. Bertone depreciava os escândalos. Dizia que os jornalistas fingiam ser Dan Brown (o autor do livro Código Da Vinci). E os escândalos potencializaram atritos. Mais do que isso: ocorreu o oposto do que Ratzinger se propunha a fazer. Ruiu o equilíbrio de poder existente no papado de João Paulo II. Decisões do Papa foram ignoradas ou levaram anos para ser cumpridas, em um corriqueiro desafio ao seu poder. Casos de pedofilia que ele queria punir não foram punidos, apesar da orientação de Bento XVI para que não houvesse complacência. O Papa verbalizava o lamento de que havia "muita sujeira na Igreja". Certa vez, ele chorou.
- Esses jogos de poder tornam difícil o governo de uma pessoa sem energia e agilidade para se mover nas intrigas. Há casos em que ele (o Papa) foi claramente enrolado. Isso não aconteceria se estivesse bem cercado de pessoas. Ele poderia facilmente continuar governando se internamente houvesse uma harmonia de poderes - diz o teólogo Érico Hammes, que cogita a possibilidade de discursos lidos por Bento XVI terem sido manipulados, com introdução de palavras indevidas.
Entrevista
Cléber Eduardo Dias , Teólogo e historiador da Igreja
Doutor em Teologia, especialista em Direito Canônico e professor de História da Igreja, Cléber Eduardo dos Santos Dias afirma, em entrevista por telefone, que a história da disputa pelo poder dentro da Igreja remonta à Baixa Idade Média, quando famílias disputavam a honra de colocar um filho na carreira eclesiástica. Ele não acredita, porém, que o Papa tenha renunciado por isso. Confira:
Zero Hora - Os casos de disputa pelo poder na Igreja são um fato novo ou tem tradição na história?
Cléber Eduardo Dias - Na história da Igreja, desde a Baixa Idade Média, sempre ocorreu isso, porque na realidade o papado era uma disputa entre famílias, eram famílias romanas que disputavam o poder. E, como eram famílias tradicionais, pelo menos umas seis famílias que disputavam o poder, dado que nessa época os Estados papais eram quase dois terços da Itália. Então, era uma fonte de renda, e as famílias queriam colocar seus filhos com o papa. A corrupção, nesse sentido, ocorreu historicamente, e muitos papas foram eleitos, alguns pelo menos, por compra de votos. O cardeal Borja, que era espanhol, comprou uma família de italianos. Disputa política, disputa de grupos na Igreja, sempre houve e sempre vai haver. O que o Papa disse é que se deve buscar a unidade dentro da Igreja. Ele fez uma prece por aqueles que despedaçam a unidade. Claro que dá para entender que dentro da Cúria romana há grupinhos, um grupo apoia mais o braço direito do Papa, que é o cardeal Tarcisio Bertone, e tem um grupo totalmente contrário a Bertone, por sua política e modo de trabalhar. São basicamente dois grupos. A diferença em relação à Idade Média é que a disputa, agora, é pelo poder espiritual.
ZH - O senhor acha que ele está tomando essa atitude extrema para dar um choque na Igreja?
Dias - Pessoalmente, acho que não é nada além da questão da saúde. Ele já falou isso, que um papa deve renunciar em caso de problemas de saúde. Ele já teve um derrame cerebral quando era cardeal, teve um outro há dois anos, tem problemas cardíacos. Acredito que é por uma questão de saúde. Ele acredita que o Papa não é um cargo vitalício, e não é mesmo. Foi a tradição que fez com que se tornasse um cargo vitalício.