Argel, Argélia - Para os argelinos, o senhor da guerra no deserto, com suas vestes azuis, era um homem de palavra - a solução para administrar a crise no vizinho Mali -, e por meses eles hospedaram seu representante num dos melhores hotéis da capital argelina.
Eles estavam criando uma víbora. O senhor da guerra, como os argelinos bem sabiam, era líder de um dos grupos militantes islamistas que mantinham o norte do Mali em cativeiro. Isso não era um problema, eles argumentaram. Ao contrário, ter ligações íntimas com um poderoso militante do outro lado da fronteira, como o Paquistão faz no Afeganistão, poderia proteger seus interesses.
Mas em vez de assegurar que o conflito permanecesse fora de seu país, uma antiga exigência dos argelinos, o senhor da guerra, Iyad Ag Ghali, acabou trazendo-o a eles. Suas forças fizeram uma súbita movimentação em direção à capital do Mali em janeiro, enfurecendo seus patronos argelinos, atraindo uma intervenção militar francesa e dando a extremistas um grito de guerra para capturar um campo de gás argelino - levando à morte pelo menos 38 reféns.
- Eles me disseram que não queriam ter mais nada a ver comigo - lembrou o representante de Ag Ghali na Argélia, Mohamed Ag Aharib. A ofensiva militante no Mali, que desencadeou a cadeia mortal de eventos, "realmente chocou os argelinos", afirmou ele.
Durante meses, autoridades dos Estados Unidos e França mantiveram a Argélia, com sua experiência em contraterrorismo e o maior orçamento militar da África, como o eixo central para resolver a ameaça do extremismo islamista no Mali.
Mas a Argélia manteve sua dominância do Saara ao negociar com os grupos armados que assolavam seu vizinho, uma política que saiu pela culatra tragicamente em janeiro, e não atingiu seu objetivo mais básico: empurrar o problema para longe.
A complexa rede de aliados e interesses pela região destaca as dificuldades que as forças francesas e africanas podem enfrentar enquanto começam a tomar o controle do norte do Mali dos jihadistas - que controlam a região há quase um ano.
Perseguir algumas centenas de combatentes estrangeiros inspirados pelo zelo religioso na ampla área sem rotas já seria suficientemente desafiador. Mas as forças que moldam o conflito são muito mais complicadas do que isso, orientadas por ambições pessoais, antigas rivalidades, políticas tribais, o relacionamento entre militantes e estados - e até mesmo a luta pelo controle do lucrativo comércio de drogas.
Todas essas lutas pelo poder ajudaram a moldar o destino da região - e elas quase certamente continuarão muito tempo depois de concluída a batalha para recapturar o norte.
- Temos dois tipos de lógica nessas organizações e nesses povos - declarou Georg Klute, professor da Universidade de Bayreuth, na Alemanha, sobre o mosaico de rebeldes, bandidos e militantes islamistas da região. - Uma é a ideologia. A outra é a lógica local.
A própria evolução de Ag Ghali é um exemplo disso. Um carismático aristocrata tuaregue que, por muitos anos, vinha alternadamente liderando rebeliões no deserto e ajudando a sufocá-las, ele costumava funcionar como contato de governos europeus buscando pagar resgates e libertar turistas sequestrados. Ele foi até mesmo nomeado cônsul-geral do Mali em Jiddah, na Arábia Saudita, de 2007 a 2009.
- Ele esteve nos dois lados de tudo - afirmou Gregory Mann, professor de história africana da Universidade Columbia.
Ag Ghali formou o grupo Ansar Dine, classificando-o como uma alternativa religiosa aos tuaregues, mais seculares. A ideia pode ter sido religiosa, mas suas ambições não pareciam desafiar a Argélia.
Até mesmo a decisão crucial de Ag Ghali de formar o Ansar Dine, um dos grupos islamistas que tomaram o norte do Mali no ano passado, surgiu tanto da política local e ambições pessoais quanto de sua nova devoção a impor uma forma puritana do Islã.
No final de 2011, segundo estudiosos, ele tentou se tornar chefe de sua tribo tuaregue - uma posição que o teria colocado à frente da luta por autonomia no norte do Mali. Quando foi rejeitado, Ag Ghali saiu por conta própria e formou o Ansar Dine, classificando-o como uma alternativa de inspiração religiosa aos tuaregues, mais seculares.
Embora a Argélia seja brutalmente intolerante com os militantes islamistas - tendo travado uma sangrenta guerra contra eles na década de 1990, que acabou levando à criação da al-Qaeda no Magrebe Islâmico -, o país chegou a um acordo com Ag Ghali. O Ansar Dine podia ser religioso, mas suas ambições não pareciam desafiar a Argélia diretamente. Por outro lado, os tuaregues, recém-abastecidos com nacionalistas voltando da Líbia, estavam exigindo independência, fazendo a Argélia temer que suas próprias minorias também pudessem se inspirar.
Os argelinos apostaram que "o Ansar Dine poderia ser um contrapeso a essas tentativas de criar um estado tuaregue independente", afirmou Klute, então "eles fecharam os olhos quando o grupo cruzou a fronteira" em busca de "gás, carros e peças sobressalentes".
Ao longo do outono de 2012, os combatentes de Ag Ghali comandaram civis no norte do Mali, mas seus homens estavam em Argel negociando com o governo, prometendo paz e assinando acordos. Isso prosseguiu apesar de amplas evidências de que Ag Ghali havia se tornado um fiel aliado da al-Qaeda no Magrebe Islâmico - o maior inimigo da Argélia -, recebendo armas, equipamentos, homens e outros materiais do grupo.
- As ligações eram muito fortes - explicou Aharib, representante local de Ag Ghali. - Eles dividiam os espólios. Trabalhavam lado a lado.
Em vez de denunciar o Ansar Dine, os argelinos pareciam querer preservar a aliança, esperando afastá-la dos extremistas religiosos e retratá-la como uma solução à crise do Mali.
- Um homem de palavra, um homem em que se pode confiar - declarou um diplomata argelino aposentado sobre Ag Ghali, numa entrevista recente.
- Um homem calmo e educado, que sabe o que quer - ecoou um oficial reformado do exército argelino.
Autoridades argelinas zombaram dos temores de que o norte do Mali teria sido perdido à militância islamista, e em 23 de dezembro, o ministro do exterior argelino elogiou um acordo de paz envolvendo o Ansar Dine como "um passo muito encorajador". No dia seguinte, porém, um porta-voz do Ansar Dine em Timbuktu anunciou que o grupo iria destruir todos os mausoléus a céu aberto da cidade - sagrados para os moradores locais - em nome de Alá.
Mas então Ag Ghali não se manteve no roteiro original. Em janeiro, ele se juntou aos outros jihadistas para avançar ao sul do Mali, precipitando a intervenção militar francesa que a Argélia tanto queria evitar.
- Ele decidiu isso com seus outros camaradas jihadistas - explicou Aharib sobre a ação ao sul do Mali. Isso levou a uma quebra no grupo, disse ele.
- Isso foi demais para nós - continuou Aharib. - Nós não vimos isso favoravelmente, de forma alguma.
As consequências vieram rapidamente. Cidadãos argelinos ficaram furiosos por seu governo permitir que os franceses usassem seu espaço aéreo para conduzir a campanha militar. Em questão de dias, extremistas islamistas invadiram um remoto campo de gás no deserto argelino, clamando vingança pelo ataque francês e pela conformidade da Argélia. Ao menos 38 reféns foram mortos. A imagem da Argélia como a potência regional que havia derrotado o terrorismo foi subitamente - e talvez irremediavelmente - comprometida.
- Isso foi realmente um fracasso de sua estratégia - argumentou Anouar Boukhars, especialista em Norte da África na Fundação Carnegie para a Paz Internacional. - Havia falhas desde o começo.
Na sequência da crise de reféns, Aharib e outros do Ansar Dine anunciaram que haviam se separado do grupo por serem "moderados". Por enquanto, Aharib garantiu seu quarto no hotel em Argel. Com os islamistas do norte do Mali em retirada (como resultado da campanha militar francesa), Ag Ghali está em fuga em algum lugar do deserto.
Mesmo assim, os argelinos não desistiram da esperança de trabalhar com o Ansar Dine - ou pelo menos de algum envolvimento com o grupo.
- Estou certo de que o Ansar Dine pode ser contornado - declarou uma autoridade argelina, um dia antes do anúncio de Aharib. - É preciso haver uma renovação do diálogo.
The New York Times
Em parceria com "senhor da guerra", Argel semeou a própria crise
Capital argelina via em Iyad Ag Ghali a solução para manter fora do país conflitos como os do vizinho Mali
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