Washington - Enquanto a revolta se fechava ao seu redor, o ditador líbio Muamar Kadafi declarou que, se ele caísse, o caos e a guerra santa tomariam conta do norte da África.
- O povo de Bin Laden viria impor resgates por terra e por mar - disse ele a jornalistas - Voltaremos aos tempos de Barba Ruiva, dos piratas, de otomanos pedindo resgates por barcos.
Recentemente, essa perturbada profecia adquiriu um duro tom de realidade. No Mali, paramilitares franceses chegaram neste mês para enfrentar uma força de combatentes jihadistas que já controlam uma área com duas vezes o tamanho da Alemanha. Na Argélia, um criminoso islamista de um olho só organizou a descarada ocupação de uma instalação internacional de gás, fazendo reféns que incluíam mais de 40 americanos e europeus.
Apenas quatro meses depois que um embaixador americano foi morto por jihadistas na Líbia, esses ataques contribuíram a uma sensação de que o norte da África - há tempos um remanso dormente da al-Qaeda - está se transformando numa zona de perigosa instabilidade, assim como a Síria, local de uma guerra civil cada vez mais sangrenta. - Esse é um dos lados mais sombrios dos levantes árabes - afirmou Robert Malley, diretor do International Crisis Group (Grupo Internacional de Crise) no norte da África e Oriente Médio - Sua natureza pacífica pode ter prejudicado a al-Qaeda e seus aliados ideologicamente, mas logisticamente, em termos da nova porosidade nas fronteiras, a expansão de áreas sem governo, a proliferação de armas, a desorganização da polícia e dos serviços de segurança em todos esses países e isso tem sido uma verdadeira bênção aos jihadistas.
A crise no Mali não deve acabar tão cedo, com os militantes se abrigando em meio aos locais e cavando fortificações. Ela também deverá testar os frágeis novos governos da Líbia e de seus vizinhos, numa região onde qualquer intervenção militar ocidental desperta amargas memórias coloniais e fornece um grito de guerra aos islamistas.
E a crise chega enquanto potências mundiais sofrem com a guerra civil na Síria, onde outro autocrata árabe faz previsões sobre as fúrias que seriam desencadeadas se ele cair.
Mesmo com funcionários da administração de Obama prometendo caçar os sequestradores da Argélia, eles enfrentaram o desafio adicional de uma paisagem jihadista assustadoramente complexa no norte da África - que desmente o rótulo fácil de "al-Qaeda", com diversas facções operando entre clãs, redes criminosas e grupos étnicos sobrepostos.
Os esforços para identificar e punir os responsáveis pelo ataque em Bengazi, na Líbia, onde o embaixador J. Christopher Stevens foi morto em setembro, atolaram numa confusão similar. O painel independente investigando o ataque culpou agências espiãs dos EUA por não compreender as muitas milícias da região, que estão constantemente se dissolvendo, dividindo e reformulando.
Embora tenha havido indicações de alianças entre militantes através das fronteiras, essas ligações parecem ser fugazes. E seus alvos costumam ser de oportunidade, como parece ter sido o caso em Bengazi e na instalação de gás na Argélia.
Em longo prazo, a administração Obama e muitos analistas estão divididos sobre que tipo de ameaça a explosão de militância islamista no norte da África representa aos Estados Unidos. Alguns clamam por uma atuação americana mais ativa, apontando que a tomada de reféns na Argélia demonstra como pode ser difícil evitar um envolvimento.
Outros advertem contra uma reação demasiado muscular.
- Isso coloca uma estrutura transnacional sobre o que é fundamentalmente um conjunto de preocupações locais, e corremos o risco de nos transformarmos mais em inimigos do que seríamos de outra maneira - argumentou Paul R. Pillar, da Universidade Georgetown, em Washington, ex-analista da CIA.
De certa forma, tanto a crise de reféns na Argélia quanto a batalha no Mali são consequências da queda de Kadafi, em 2011. Como os outros homens fortes da região, Kadafi basicamente mantinha sob controle as diversas facções tribais e étnicas de seu país, fosse através de uma opressão brutal ou cooptando-as a lutar por seu governo. Ele funcionava como uma tampa, mantendo elementos voláteis reprimidos. Quando essa tampa foi removida, e as fronteiras que haviam sido reforçadas por governos poderosos ficaram mais porosas, houve grande liberdade para vários grupos - rebeldes, jihadistas ou criminosos - se unirem e criarem uma causa comum.
No Mali, por exemplo, há os tuaregues, um povo nômade etnicamente distinto tanto dos árabes, que formam as nações do norte, quanto dos africanos que habitam o sul do Mali e controlam o governo nacional. Eles lutaram por Kadafi na Líbia, então voltaram pela fronteira após sua queda, reunindo-se com grupos islamistas para formar uma força de combate muito mais formidável. Eles trouxeram armas pesadas e uma nova determinação para derrubar o governo maliano, que era combatido por eles há décadas numa luta secular por maior autonomia.
Até mesmo o ataque ao campo de gás na Argélia - que ocorreu próximo à fronteira com a Líbia, e pode ter envolvido combatentes líbios - reflete o caos que prevalece na Líbia nos últimos dois anos.
Mas a queda de Kadafi foi apenas a gota d'água, dizem alguns analistas, numa região onde o caos vinha crescendo há anos - e homens lutando sob a bandeira da jihad acumularam enormes reservas de dinheiro com contrabando e outras atividades criminosas. Se a retórica dos militantes islâmicos que hoje lutam no norte da África fala em guerra santa, a realidade mostra uma batalha entre bandidos rivais numa região onde a autoridade do governo tem a espessura de uma folha de papel.
Entre essas figuras, dois nomes se destacam: Mokhtar Belmokhtar, o senhor da guerra que comandou o ataque ao campo de gás argelino, e Abdelhamid Abu Zeid, um líder da al-Qaeda no norte da África.
- A força motriz do jihadismo na região do Saara é a competição entre Abu Zeid e Belmokhtar - declarou Jean-Pierre Filiu, analista do Oriente Médio no Instituto de Estudos Políticos, em Paris.
Belmokhtar gerou milhões de dólares para a al-Qaeda sequestrando estrangeiros e contrabandeando tabaco, o que lhe rendeu um de seus apelidos: "Mr. Marlboro". No ano passado, porém, o rival de Belmokhtar obrigou-o a sair da organização.
- Agora ele retaliou organizando o ataque ao campo de gás na Argélia, e foi um tipo de jogada magistral. Ele provou sua capacidade - afirmou Filiu.
Os dois homens são da Argélia, terreno fértil para o extremismo islâmico. A Al-Qaeda do Magrebe Islâmico, como é conhecido o ramo regional da organização, surgiu com islamistas argelinos que lutaram contra seu governo, durante o sangrento conflito civil da década de 1990 no país.
Hoje, o governo autoritário da Argélia é visto como um intermediário crucial, pela França e outros países ocidentais, para lidar com os militantes islamistas no norte da África. Mas os argelinos vêm mostrando relutância em se envolver demais numa ampla campanha militar, que poderia ser muito arriscada para eles. A ação internacional contra o poder islamista no norte do Mali poderia empurrar os militantes de volta ao sul da Argélia, onde eles começaram. Isso anularia anos de violentas batalhas das forças armadas argelinas, que praticamente conseguiram expulsar os jihadistas de suas fronteiras.
Os argelinos também têm pouca paciência com o que seria uma ingenuidade ocidental em relação à Primavera Árabe, segundo analistas.
- Sua postura era: "Por favor, não intervenham na Líbia, ou vocês criarão outro Iraque em nossa fronteira"- explicou Geoff D. Porter, especialista na Argélia e fundador da North Africa Risk Consulting - E depois, "Por favor, não intervenham no Mali, ou acabarão criando uma confusão em nossa outra fronteira". Mas eles foram descartados como se estivessem apenas nervosos demais, e agora a Argélia diz para o Ocidente: "Com os diabos, nós avisamos".
The New York Times
Norte da África mergulha no caos após Primavera Árabe
Instabilidade na região possui muitas raízes, mas é também um lembrete de que a eufórica derrubada de ditadores na Líbia, Tunísia e Egito teve seu preço
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