Toronto - À sombra das enormes torres negras da sede de um banco no centro da cidade, havia na calçada uma massa de plumas acinzentadas difíceis de distinguir.
Era o corpo de um pobre Regulus satrapa que se chocou contra o icônico prédio do Toronto-Dominion Center.
Não se sabe exatamente quais são as cidades mais mortais para pássaros migratórios, mas Toronto certamente é uma forte candidata ao título. Quando uma equipe de documentaristas britânicos quis filmar os pássaros mortos pelo choque com os vidros, o ornitólogo Daniel Klem Jr., do Muhlenberg College, em Allentown, Pensilvânia, que estuda o problema há 40 anos, os trouxe até aqui, onde centenas de pássaros passam pelo céu, chocando-se de tempos em tempos com o concreto.
- Eles morrem em todo o canto, onde haja até mesmo a menor janela de garagem - afirmou Klem. - No caso de Toronto, talvez por conta do número de prédios e pássaros, a situação é mais dramática.
Tantos pássaros trombam com as torres envidraçadas da cidade mais populosa do Canadá, que voluntários vasculham o chão do distrito financeiro em busca deles antes do amanhecer todos os dias. Eles carregam sacos de papel e redes de borboletas para resgatar os pássaros feridos do corre-corre dos pedestres ou, infelizmente, para recolher os corpinhos dos que morreram.
O grupo por trás da observação dos pássaros, o Programa de Conscientização das Luzes Mortais, conhecido como FLAP, estima que de 1 a 9 milhões de pássaros morrem todos os anos em colisões com prédios na área de Toronto. O fundador do grupo já recuperou sozinho 500 corpos em uma manhã.
O moderno horizonte de Toronto começou a crescer nos anos 1960, com diversas estruturas cobertas de vidro, formando uma longa parede ao longo da costa noroeste do Lago Ontário. A barreira atravessa diversas rotas migratórias, e são as primeiras grandes estruturas que os pássaros encontram em sua jornada em direção às áreas selvagens do norte.
Ainda que esses fatores tornem os prédios de Toronto especialmente fatais, Klem também foi rápido em dizer que a cidade é a mais preocupada com o problema na América do Norte.
Depois de anos realizando missões de resgate e exigindo que a cidade inclua medidas de proteção aos pássaros em suas regras de construção civil, o FLAP começou recentemente a utilizar a justiça para salvar a vida dos pássaros. O projeto está envolvido em duas ações utilizando leis que visam proteger os pássaros migratórios da caça e dos perigos industriais para processar os donos de dois edifícios especialmente problemáticos.
Andando rapidamente em uma manhã recente com o observador de pássaros voluntário, Michael Mesure, que fundou a FLAP 19 anos atrás, pudemos ver diversos exemplos de prédios mortais. Quando nos aproximamos de uma área especialmente problemática, a porção leste do distrito financeiro, Mesure apontou para um bando de gaivotas empoleiradas nas árvores em frente a um prédio comercial. Segundo ele, elas estavam esperando para se alimentarem dos pássaros mortos ou feridos pelo prédio.
O edifício possui uma fachada de vidro que desorienta os pássaros ao refletir os arredores. Os pássaros acreditam que os reflexos sejam parte do ambiente e voam em direção ao vidro sem perceberem o problema.
As vítimas quase sempre são pássaros canoros. Por conta da familiaridade com o ambiente, alguns pássaros mais urbanos, como pardais, pombos e gaivotas, dificilmente se chocam com o vidro, afirmou Klem.
Todos os pássaros coletados pelo FLAP, vivos ou mortos, são colocados em sacos de papel. Embora não houvesse sobreviventes naquela manhã, os pássaros atordoados e assustados geralmente são soltos em um parque próximo à beira do Lago Ontario. Os feridos são levados para centros de reabilitação animal nos arredores da cidade.
Os mortos recebem uma identificação com o local da morte nos sacos de papel e depois são colocados em freezers na sede do FLAP, localizada no prédio da prefeitura da cidade, que apoia o programa. Antes mesmo do começo das migrações de outono, o freezer já estava quase cheio. Os sacos guardavam corpos de corujas e beija-flores, e a beleza das cores vivas de suas plumas geralmente desaparecia frente ao sangue que escorria de suas cabeças esmagadas.
- Se o mesmo número pessoas colidisse com os edifícios, essa questão teria sido abordada há muito mais tempo - afirmou Mesure. - A sociedade não se importa com isso.
De acordo com Mesure, uma fórmula especialmente eficaz, ainda que impopular, de reduzir a ameaça aos pássaros consiste basicamente em cobrir as áreas externas dos prédios com o mesmo tipo de filme plástico perfurado que transforma janelas de carros e ônibus em grandes outdoors. O filme plástico pode receber propagandas ou imagens decorativas, mas o grupo também descobriu que um padrão repetitivo de pequenos círculos feitos do mesmo adesivo plástico é igualmente eficaz e esteticamente mais neutro.
Para novos prédios, a solução pode ser a utilização de formas em ziguezague na fachada do prédio. Além disso, uma empresa de alemã desenvolveu janelas que poderiam incluir padrões ultravioleta que os pássaros seriam capazes de enxergar, mas que são invisíveis aos olhos humanos.
Contudo, mesmo após duas décadas chamando atenção ao problema, Mesure reconhece que a ameaça aos pássaros raramente é levada em consideração por arquitetos e construtoras. Ao longo da rota matutina há um hotel que foi um dos últimos edifícios aprovados por Toronto antes das novas regras entrarem em vigor. O uso intenso de vidros reflexivos em padrão irregular certamente será "especialmente letal para os pássaros", afirmou Mesure.
Curiosamente, o ativista também destacou que o prédio incluirá em sua base a estátua de um dragão coberto de pequenos pássaros.
A primeira decisão dos processos, que envolvem complexos comerciais fora do centro da cidade, sairá no dia 15 de novembro. Ainda que as acusações estejam de acordo com leis federais e estaduais, os casos estão sendo processados pela Ecojustice, um grupo jurídico ambiental sem fins lucrativos, e não pelo governo, conforme permite a lei canadense.
O resultado já é óbvio para o Consilium Place, um complexo suburbano de três torres comerciais, envolvido no primeiro processo. O Consilium está localizado no vale de um rio que é o principal ponto de descanso de pássaros migratórios no Lago Ontário. A localização e os vidros reflexivos da fachada em duas das torres - que ajudam a reduzir o calor e o custo com ar-condicionado, mas são letais para os pássaros - fazem com que os prédios sejam as estruturas mais perigosas para os animais na cidade, afirmou Mesure.
A antiga proprietária, a Menkes, rejeitou diversas vezes as propostas de solução com base em custos e em questões estéticas, afirmou. - Tentamos engajá-los, mas o problema não foi resolvido.
A Menkes não quis dar entrevista. Entretanto, desde que o complexo foi vendido no ano passado, a nova proprietária, a Kevric Real Estate, começou a colocar em prática os padrões de pequenos pontos brancos nas janelas. Apesar de isso estar longe do ideal, a medida já apresenta resultados positivos. O freezer para guardar os pássaros mortos, instalado pelo novo dono na garagem subterrânea, contém apenas 12 pássaros, muito menos do que costuma acontecer durante os períodos migratórios.
Entretanto, no caso do Toronto-Dominion Center, os pássaros voam de encontro a preocupações de caráter estético. As altas torres construídas em 1967 são o último grande trabalho do mestre modernista Mies van der Rohe. A proprietária do edifício, a Cadillac Fairview, afirmou que passou a aplicar um padrão de pontos nas janelas para proteger os pássaros, mas utilizou adesivos pretos com o objetivo de não prejudicar o design minimalista do arquiteto. Contudo, uma vez que os pontos são difíceis de ver, não servem para alertar os pássaros, segundo Mesure.
A empresa não aceitou dar entrevista, mas enviou uma declaração em que dizia que "a proteção aos pássaros é um assunto que levamos muito a sério". A parada final dos ativistas naquela manhã deixou claro que os prédios não precisam ser arranha-céus para serem letais. Os corpos de um Poecile atricapillus e de uma trepadeira-azul-do-canadá foram encontrados em frente a um pequeno prédio industrial coberto de vidro azul que refletia o bosque vizinho. À medida que Paloma Plant, funcionária do FLAP, recolhia os dois pássaros do chão, revoadas de Poecile atricapillus passavam sobre ela, evitando por pouco a colisão.
- Quando você olha para o freezer e vê todos aqueles pássaros mortos, é impossível não se comover - afirmou Plant, segurando os dois pássaros nas mãos.