Cairo - Após meses de debate feroz a respeito do lugar do islã no governo, a assembleia responsável por esboçar uma nova constituição para o Egito determinou um acordo que abre a porta para mais religião no governo, mas, principalmente, garante que a questão continuará a agitar a política, o Parlamento e os tribunais durante muitos anos no futuro.
O pacto deve inserir a religião mais profundamente no legislativo e no processo judicial através da elaboração de novas diretrizes para interpretar "os princípios da lei islâmica", reconhecida pela constituição antiga, ao menos nominalmente, como a principal fonte da legislação egípcia.
Porém, a nova constituição também deixaria a autoridade final para aplicar esses princípios para o Parlamento eleito e os tribunais civis, dificultando a previsão das consequências a longo prazo. Espera-se que pouco mude sob os tribunais atuais e o Parlamento - dominado por islamistas, a maioria favorável a uma abordagem relativamente flexível ou gradual rumo à adoção da lei islâmica -, mas as consequências potenciais no futuro já são tema de acalorado debate.
Se os ultraconservadores inclinados à literalidade - conhecidos como salafistas e detentores de aproximadamente um quarto dos assentos no Parlamento - ganharem maior influência na legislatura e, por fim, nos tribunais, um dia eles poderiam usar as disposições para tentar impor uma interpretação estrita da lei islâmica. Se os islamistas ganharem mais poder no Parlamento, tribunais e instituições religiosas, "eu veria a possibilidade de uma mudança evolucionária real", afirmou Nathan J. Brown, especialista em lei egípcia da Universidade George Washington, situada na capital dos Estados Unidos.
Porém, ao manter o poder nas mãos de autoridades eleitas e tribunais civis, o acordo também dispersaria, por enquanto, os temores, aqui e no Ocidente, de que o Egito pode seguir o caminho da revolução de 1979 no Irã na direção de uma teocracia na qual os líderes religiosos têm a palavra final em todas as questões de Estado. Os delegados liberais que assinaram o acordo observaram que as diretrizes eram amplas o suficiente para deixar espaço substancial para a discussão a respeito do que a lei islâmica exigiria no contexto do Egito moderno.
- Quanto mais interpretação, melhor - disse Manar el-Shorbagy, cientista político da Universidade Americana no Cairo e delegado liberal que assinou o acordo. - Você está deixando de colocar tudo sob uma interpretação, a dos salafistas ou seja lá de quem for.
Como o maior Estado árabe e berço da Irmandade Muçulmana internacional, o Egito se tornou a baliza dos movimentos políticos islamistas pela região depois da Primavera Árabe. Na Tunísia, local do primeiro levante, o partido islamista dominante já aceitou um acordo mais liberal, mantendo uma cláusula na constituição segundo a qual o islã é a religião do Estado, mas omitindo qualquer referência à lei islâmica.
Embora muitos países com maioria muçulmana reconheçam o islã em suas constituições, o Egito se tornaria o primeiro Estado árabe a buscar uma mescla da democracia com os princípios da lei islâmica, a sharia. Embora os termos completos do acordo não tenham sido revelados, vários liberais e islamistas envolvidos nas negociações descreveram seus detalhes. Delegados dos dois lados chamaram o acordo de vitória. Younis Makhyoun, líder salafista na assembleia constitucional que assinou o acordo, argumentou que este "impediria alguém de inventar novas escolas de pensamento e afirmar que fazem parte da sharia".
Ecoando os temores dos liberais, Makhyoun sugeriu que algum dia as disposições podem até ser utilizadas para a aplicação estrita dos puritanos códigos morais islâmicos, como o apedrejamento de adúlteros ou o corte das mãos de ladrões.
Entretanto, do lado de fora da assembleia muitas pessoas de ambos os lados denunciaram o acordo como uma traição. Recentemente, milhares de salafistas encheram a Praça Tahrir para protestar porque o esboço não teria avançado o bastante.
Se por um lado os liberais da assembleia argumentam que refutaram as propostas salafistas para a criação de um conselho de acadêmicos religiosos o qual poderia se sobrepor à legislação, por outro, muitos ativistas do lado de fora estavam irritados pelo fato de a constituição, pela primeira vez, levar a sharia a sério. "É a estrada para o Afeganistão", disse Malek Adly, ativista liberal.
Embora a constituição antiga tenha reconhecido os "princípios da lei islâmica" após uma revisão, em 1980, seu texto praticamente não tinha consequência sob a antiga autocracia secular.
A derrubada de Hosni Mubarak no ano passado desencadeou o clamor pela lei islâmica e, também, o debate sobre o que ela significaria, com os novos partidos islamistas indo dos ultraconservadores a quem se reconhece como liberal.
A Irmandade Muçulmana, que dominou as eleições desde o levante, argumenta que a sharia somente "refina a moral, por meio da persuasão e educação, sem nenhum tipo de coerção", nas palavras de Mohamed Badie, guia supremo do grupo, ditas semana passada com o objetivo de apoiar o acordo. "A sharia rejeita completamente o conceito de teocracia."
Esforçando-se para apresentar alguma semelhança de consenso, os líderes da Irmandade ajudaram a unir representantes dos lados liberal e salafista, em conjunto com representantes da igreja copta egípcia, para sessões de negociação de 36 horas antes de assinarem o acordo.
Segundo o pacto, em assuntos pessoais, cristãos e judeus têm liberdade de seguir os próprios ensinamentos religiosos. E estabelece que em questões ligadas à lei islâmica, o Parlamento ou os tribunais podem buscar o conselho não obrigatório de acadêmicos de Al Azhar, o centro de estudos muçulmano sunita criado para se tornar independente do controle estatal.
Segundo acadêmicos, no fim das contas, o verdadeiro impacto da nova disposição - definindo os "princípios da sharia" de acordo com o estabelecido pelo pensamento muçulmano sunita - seria o de levar a batalha quanto à aplicação da lei islâmica para o terreno do estudo religioso.
Os conservadores se sentem mais confortáveis assim, disse Clark Lombardi, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Washington, que estuda o papel da lei islâmica nos sistemas jurídicos. Porém, "islamistas liberais" no Egito e outros lugares também estão se tornando mais eficientes na defesa de casos tomando por base a sharia para defender os direitos femininos ou outras causas.
Para Lombardi, "a batalha entre liberais e conservadores voltará a acontecer".