Agora, parece que Lucy compartilhou a África Oriental com outras espécies pré-humanas, que podem ter passado mais tempo em árvores do que no chão.
O fóssil de um pé com 3,4 milhões de anos encontrado na Etiópia parece resolver a longa e contestada questão de se houve ou não uma única linhagem de hominídeos - espécie mais estreitamente relacionada ao homem moderno que aos chimpanzés - entre 4 e 3 milhões de anos atrás. O registro fóssil desse período estava praticamente limitado à espécie Australopithecus afarensis, que se tornou famosa pelo esqueleto de Lucy, de 3,2 milhões de anos de idade.
O que talvez seja ainda mais importante, segundo relatado por cientistas no periódico Nature, publicado online em março, é que o pé recém-descoberto não só pertencia a uma espécie diferente, mas que esta tinha desenvolvido um modo distinto de locomoção, que cientistas descreveram como "equívoco". A espécie se agarrou às árvores e nunca se adaptou completamente à mobilidade terrestre.
A espécie de Lucy desenvolveu muito tempo antes uma mobilidade ereta e bípede muito semelhante à dos homens modernos, como atestaram as pegadas de Laetoli, na Tanzânia, de mais de 3,7 milhões de anos atrás. Essa outra espécie ainda foi feita para escalar árvores e usar membros agarradores. Ela possuía capacidade de andar, porém com menos eficiência e, provavelmente, de forma desajeitada.
Os descobridores concluíram que, em um período crucial na evolução pré-humana, duas linhas de hominídeos praticaram comportamentos contrastantes de locomoção. A diferença estava nos pés: o dedão divergente e oponível, os dígitos longos e outros ossos da espécie recém-descoberta não correspondem aos pés do afarensis. O pé de Lucy tinha um arco pronunciado e o dedão era alinhado com os outros quatro dígitos, de modo muito semelhante aos pés do homem moderno, com características fundamentais para uma bipedalidade eficaz e mantendo alguma agilidade para subir em árvores.
Yohannes Haile-Selassie, paleoantropólogo no Museu de História Natural de Cleveland, Ohio, e seus colegas disseram que a espécie a que pertence o pé permanece indeterminada por falta de quaisquer restos cranianos ou dentais associados ao modelo. Mas eles disseram que o pé é impressionantemente similar ao do hominídeo anterior, Ardipithecus ramidus, apelidado de Ardi, que viveu há 4,4 milhões de anos atrás, também onde hoje é a Etiópia.
O pé de Ardi também possuía um dedão divergente semelhante ao de macacos e gorilas para subir em árvores, embora Ardi ocasionalmente se locomovesse na posição vertical.
Daniel E. Lieberman, biólogo evolucionista humano na Universidade de Harvard, que não esteve envolvido com o estudo, escreveu em um comentário para o periódico que o pé do hominídeo "é uma adição valiosa para o registro fóssil, uma vez que estende a existência de pés semelhantes aos do Ardipithecus ramidus em um milhão de anos".
Essas e outras descobertas recentes, disse Lieberman, indicam "que havia mais diversidade na locomoção dos hominídeos do que tínhamos pensado anteriormente e nem toda ela ocorria no chão".
Donald C. Johanson, descobridor de Lucy, o exemplar original do afarensis, admirou esse novo membro do reino fóssil.
- É um pezinho adorável de se ter - disse ele, concordando que sua semelhança com o modo de locomoção do Ardipithecus sugeria a existência de "duas linhagens paralelas nesse período".
Johanson, diretor fundador do Instituto de Origens Humanas da Universidade Estadual do Arizona, descobriu o esqueleto de Lucy em 1974 a apenas 48 quilômetros do local dessa descoberta mais recente. Em fevereiro de 2009, em um lugar no centro de Afar, região conhecida como Burtele, um membro da equipe de Haile-Selassie, Stephanie Melillo, avistou o primeiro fragmento de osso erodindo a partir do arenito.
Assim, 8 ossos dos usuais 27 de um pé hominídeo foram recuperados e analisados. Era um pé direito e, como não havia duplicação de partes, acredita-se ser de um único indivíduo. Encontrar qualquer osso de um pé hominídeo tão antigo é muito raro, disse Haile-Selassie. Eles são pequenos e delicados e especialmente vulneráveis à eliminação e ao decaimento.
Beverly Z. Saylor, da Universidade Case Western Reserve, em Cleveland, membro da equipe e autora do relatório, disse que, na época em que esse hominídeo viveu, a região tinha muitos lagos e riachos com margens arborizadas, portanto, com amplas oportunidades para hábitos arborícolas. A datação dos sedimentos onde os ossos estavam incorporados foi conduzida pelo Centro de Geocronologia de Berkeley, na Califórnia.
Outro autor, também da Case Western Reserve, Bruce M. Latimer, disse que os resultados mostraram claramente que a adaptação à bipedalidade, embora considerada uma das transições decisivas na evolução humana primitiva, não foi um evento único, isolado. Um grupo, a espécie de Lucy, abandonou o habitat arborícola e se transformou em um grupo de caminhantes de longas distâncias, funcionalmente comprometidos. Por razões desconhecidas, outro grupo, representado pelo pé de Burtele, manteve o pé para escaladas e permaneceu ao menos parte do tempo nas árvores.
Em retrospectiva, disse Latimer, "é evidente que o grupo foi bem-sucedido". O Homo erectus parece ter sido o primeiro a andar sobre um pé totalmente moderno.
Os próprios descobridores, bem como outros paleoantropólogos, citaram a necessidade de mais fósseis para determinar os corpos que possuíam esse pé e sua possível relação com os Ardipithecus, muito anteriores.
"As implicações dessa diversidade de membros para a evolução humana," escreveu Lieberman, "exigirão que pesquisadores continuem sujando os pés no campo e no laboratório".
Johanson disse que a região de Burtele era uma área relativamente nova de exploração e, assim, as perspectivas eram boas para "encontrar dentes e mandíbulas, essenciais para a próxima etapa".
Ian Tattersall, paleoantropólogo no Museu Americano de História Natural em Manhattan, disse que considerava o pé de Burtele "realmente interessante" e confirmador de indícios de diversidade na mobilidade dos hominídeos nesse período, e ainda alertou contra "um excesso de conclusões precipitadas por enquanto".
Nem sempre as novas descobertas fósseis são abençoadas com consenso imediato. Quando o Kenyanthropus platyops, de 3,5 milhões de anos de idade, foi encontrado no Quênia, há uma década, os descobridores informaram que a descoberta indicava a presença de outras espécies junto ao Australopithecus, mas ainda permanece alguma dúvida quanto a essa interpretação. Da mesma forma, alguns cientistas permanecem céticos quanto ao fato de o Ardipithecus ramidus ser um hominídeo; eles argumentam que era na verdade um macaco que evoluiu para uma bipedalidade limitada.
Lieberman pareceu ter sido tocado também por uma influência atávica não científica.
- A evolução humana muitas vezes é retratada como um triunfo do bipedalismo, mas quem entre nós não lamentou ocasionalmente a imperícia comparativa de nossa espécie em árvores? - escreveu. - Eu, por exemplo, fico satisfeito em saber que alguns hominídeos mantiveram pés bem adaptados para o arborismo milhões de anos depois que começamos a andar sobre dois pés.