Trípoli, Líbia - Os líderes milicianos que transformaram a Líbia pós-Kadafi em uma colcha de retalhos de feudos semiautônomos estão agora mergulhando na política, gerando temores de que suas brigadas armadas possam prejudicar as eleições projetadas para lançar o alicerce de uma nova democracia.
O líder miliciano de Zintan, que controla o aeroporto da capital, já trocou seu uniforme por um terno, e começa a falar em concorrer a um cargo político - com o apoio de seus 1.200 homens armados. O diretor do conselho militar de Trípoli está começando um partido político, e o conselho militar de Bengazi está preparando sua própria chapa de candidatos para os cargos locais.
Milícias regionais e o Conselho Nacional de Transição, que está no poder, já proibiram a cidade de Bani Walid, outrora um bastião de apoio a Muamar al-Kadafi, de escolher seu governo local. Outros líderes milicianos estão oferecendo seu apoio armado como braços militares de partidos recém-formados.
Desde a morte de Kadafi, em outubro, os líbios têm contado com o ritual da urna para acabar com quatro décadas de governo brutal. As brigadas que foram formadas para lutar contra Kadafi, e muitas outras que surgiram depois, frustraram a consolidação de uma nova autoridade central e se tornaram uma ameaça à segurança, trocando tiros mortais nas ruas da capital, detendo e torturando pessoas suspeitas de apoiar Kadafi, e recentemente até sequestrando dois membros do Conselho Nacional de Transição por dois dias.
Os líderes interinos da Líbia dizem esperar que um governo eleito tenha legitimidade para controlar essas milícias, e o país está correndo para as urnas. As duas maiores cidades do país, Bengasi e Trípoli, estão planejando eleições locais para maio, e o Conselho Nacional de Transição prometeu eleições em junho, para escolher uma assembleia que governará enquanto uma nova constituição é elaborada.
No entanto, com a ausência de um exército nacional e uma força policial, muitos civis temem que as milícias intimidem eleitores, suprimam votos ou dominem o processo de alguma outra maneira, deixando a Líbia atolada em violência interna, devastada por tensões regionais ou - como uma pesquisa recente sugere que agora seja a expectativa de muitos líbios - vulnerável ao surgimento de outro tirano.
Até os políticos civis, preocupados com o jogo entre armas e política, afirmam que talvez não consigam resistir a algo assim.
- Estamos dizendo muito claramente que não queremos fazer parte disso - disse Ali Tarhuni, ex-ministro interino do petróleo e vice-primeiro-ministro, que agora está começando um dos novos partidos. - Mas, no futuro, o que poderemos fazer?
Tarhuni e outros afirmam temer que a Líbia repita a experiência do Líbano, onde milícias armadas formadas durante a guerra civil no país acabaram se tornando uma presença permanente no cenário político. Algumas brigadas espalhadas pelo país, entre elas a do aeroporto, liderada por Mokhtar al-Akhdar, já desenvolveram fontes independentes de renda, especialmente através da oferta de serviços de segurança.
- Proteção - disse Tarhuni.
Outros afirmam que a Líbia ainda poderá surpreender as expectativas de caos nos diversos dias de eleição. A cidade relativamente homogênea de Misrata recentemente organizou eleições pacíficas. Aqui na capital, mais dividida e localizada no outro lado do país, autoridades líbias admitem que estão contando com fatores intangíveis, como as tradições tribais, o espírito unificador da revolução e o patriotismo dos jovens milicianos, para manter algum grau de ordem. Apesar disso, Mustafa Abu Shagour, o vice-primeiro-ministro do governo interino, disse que espera ver armas nas ruas.
- Estou muito preocupado - ele disse.
Depois de 42 anos de uma ditadura disfarçada, que se autointitulava um "governo participativo das massas", os líbios parecem não confiar na democracia. Em uma pesquisa feita entre os líbios em dezembro e janeiro por um setor da Universidade de Oxford, apenas 15 por cento dos mais de 2.000 entrevistados afirmaram desejar algum tipo de democracia nos próximos 12 meses, enquanto 42 por cento disseram esperar que a Líbia fosse governada por um novo ditador. Mas o fator mais preocupante é que uma minoria significativa, cerca de 16 por cento, disse estar disposta a usar a violência para fins políticos.
Os líderes das milícias locais insistem que são os guardiões da democracia, e que estão compensando as falhas de liderança do Conselho Nacional de Transição. Mas eles continuam a depender do poder armado, externo a qualquer processo legal ou político.
Quando uma manifestação pacífica em Bengazi defendeu o federalismo, o ministro do interior - líder miliciano em Misrata - ameaçou publicamente liderar uma força armada de sua cidade para combater o que ele considerava uma ameaça à união nacional.
Fawzi Bukatief, comandante de uma aliança de 40 brigadas orientais com base em Bengazi, disse estar próximo de anunciar uma união nacional de milícias, independente dos Ministérios da Defesa e do Interior. Ele disse que a união poderia usar o seu poder de fogo para reprimir outros grupos armados que ainda operam dentro de Trípoli.
- Vamos pará-los, ou aprisioná-los - ele disse. - Conhecemos os combatentes. Decidiremos quem é revolucionário e quem não é. - As milícias são o problema, mas também a solução - ele concluiu.
Usando uma jaqueta de lã, e não um uniforme de camuflagem, ele disse que está pensando em concorrer a um cargo político em Bengazi. Fazer isso enquanto seus combatentes supervisionam as eleições poderia "causar um conflito de interesses", ele disse, dando de ombros, e afirmando que teria que "abandonar" seu cargo como miliciano.
O governo interino não tem conseguido impedir ataques a tribos e bairros suspeitos de apoiar Kadafi, e muito menos garantir seu direito de voto.
No bairro de Abu Salim, em Trípoli, uma brigada miliciana ainda opera de dentro de um bunker fortemente blindado, com metralhadoras no teto apontadas para as ruas. Os habitantes - especialmente os de pele escura, que costumam ser suspeitos de pertencer às tribos que lutaram por Kadafi - dizem ter medo de passar em frente ao bunker. Dentro do bunker, prisioneiros esmurravam as portas de metal de pequenas celas.
Abdul Salem el-Massoudi, o diretor de "interrogatórios" do conselho militar do bairro, de 42 anos, disse que a milícia ainda estava caçando os suspeitos de um massacre perpetrado por forças de Kadafi. Quanto aos líbios de pele escura da cidade de Tawarga, ele sugeriu que eles mesmos eram culpados por sua situação.
- Os filhos deles são os responsáveis por seus problemas - por terem lutado por Kadafi, ele disse. - Agora, eles serão refugiados em qualquer lugar aonde forem.
As autoridades do governo interino ainda insistem que planejam controlar as milícias até as eleições de junho, em parte através da contratação de milicianos para a criação de uma guarda nacional. Não está claro, no entanto, o nível de lealdade que o dinheiro conseguirá comprar.
Rico com o dinheiro do petróleo, o governo interino já começou a distribuir pagamentos a milhares de milicianos por serviços de segurança na capital - o equivalente a cerca de US$ 2.000 para cada combatente solteiro e US$ 3.300 para cada um que tiver família.
Em março, brigadas locais começaram a formar filas para recolher seus pagamentos na frente da antiga academia de polícia, que por acaso fica em Hadhba, outro bairro conhecido por sua lealdade ao antigo ditador. Mas um grupo de combatentes mais rebeldes do bairro de Souk el-Juma decidiu que não estava sendo pago rápido o bastante e que, além disso, não gostava de ser obrigado a receber o pagamento em um bastião legalista.
Então, um caminhão cheio de combatentes atacou a academia. Em meio a uma tempestade de tiros - muitos estavam armados com Kalashnikovs, alguns com facas, e eles ainda contavam com o apoio de três metralhadoras - eles derrubaram as grades de ferro, arrancaram algumas das suas estacas pontiagudas para usar como armas e quebraram as janelas da prisão.
- Fujam! Nós vamos matar vocês! - gritou um dos combatentes para os moradores em fuga. Outro combatente declarou: - Isso tudo é nosso agora. Nós somos os donos aqui.
Dois dias depois, os líderes da brigada Souk el-Juma estavam distribuindo os pagamentos aos seus membros em seu próprio quartel general, minando qualquer esperança de transferência da lealdade dos combatentes a uma autoridade central.
Antigos oficiais de Kadafi, que também estão planejando formar um partido político, afirmam ouvir um eco do passado.
- Eles estão falando a mesma língua que nós costumávamos falar - disse um dos antigos conselheiros de Kadafi, falando sob condição de anonimato para sua própria segurança. - Nós usávamos força. Eles estão usando força. Nada mudou, a não ser a bandeira e o hino nacional.