Tunísia - A epifania de Said Ferjani ocorreu depois de sua infância pobre em uma beata cidade da Tunísia, depois que o renascimento religioso despertou sua consciência, depois de planejar um golpe de Estado e ter suas costas quebradas por um torturador, depois de fugir para a Inglaterra com um passaporte emprestado e se juntar a outros islamistas em busca de asilo.
Vinte e dois anos mais tarde, quando Ferjani retornou para casa, ele compreendeu sua missão: construir uma democracia, liderada por islamistas, que deveria servir de modelo para todo o mundo árabe.
- Este é o nosso desafio - afirmou.
As revoltas que tomaram conta do Oriente Médio há um ano foram o resultado da determinação dos jovens em imaginar um futuro diferente para o mundo árabe; já o que se seguiu, com as eleições que ocorreram no Egito e na Tunísia, e a possibilidade de uma influência islamista decisiva no Marrocos, na Líbia e talvez na Síria, é o momento de outra geração um pouco mais velha.
Ninguém sabe qual será o final de um dos capítulos mais importantes da história do mundo árabe moderno, já que a região substituiu um movimento contra as ditaduras por outro que demonstra ter objetivos muito mais ambíguos. Mas a geração representada por Ferjani, moldada pela prisão, pelo exílio e pela repressão e unida pela fé e por alianças construídas ao longo de anos, terá a palavra final na definição do futuro.
Sua ascensão ao primeiro plano da política árabe demonstra a persistente destreza intelectual e organizacional da Irmandade Muçulmana, um movimento de revitalização fundado em 1928 por um professor egípcio em uma cidade do Canal de Suez.
Mas as correntes intelectuais que antes irradiavam do Egito agora fluem com a mesma frequência na direção oposta, à medida que estudiosos e ativistas do Marrocos e da Tunísia exportam ideias que buscam encontrar uma síntese entre dois conceitos que os islamistas mais radicais e seus críticos, tanto aqui quanto no Ocidente, ainda consideram inconciliáveis: a fé e a democracia.
Ferjani, um intelectual autodidata que, aos 57 anos, é tão exuberante quanto casto, reconhece as dúvidas.
- Eu posso lhes dizer uma coisa. Agora nós temos uma oportunidade de ouro - afirmou sorrindo.
- Eu não estou interessado no controle desta oportunidade de ouro, estou interessado em construir o melhor sistema carismático, um sistema que seja carismático e democrático. Esse é o meu sonho.
Nada na infância de Ferjani realmente o preparou para realizar essa ambição. Nascido em Kairouan, considerada a quarta cidade mais sagrada do islamismo por alguns religiosos, ele não foi uma criança especialmente religiosa. De acordo com seu próprio relato, ele era rebelde e indisciplinado até completar 16 anos.
Naquele ano, Rachid al-Ghannouchi, um nacionalista árabe transformado em islamista e que havia estudado no Egito e na Síria antes de retornar para a Tunísia, começou a trabalhar como professor de árabe em Kairouan. Al-Ghannouchi ficaria apenas um ano antes de deixar o posto para fundar o Movimento da Tendência Islâmica, atualmente conhecido como Partido Ennahda, mas deixou um legado entre seus alunos.
- Ele sempre falava sobre o mundo e sobre política. Porque nós muçulmanos somos atrasados? O que nos torna atrasados? Ser assim é o nosso destino? - afirmou Ferjani.
As questões propostas por al-Ghannouchi moldaram sucessivas gerações de islamistas, um termo que jamais captura sua diversidade. O tema foi analisado pela obra de Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana, cuja noção de trabalho missionário provou sua eficácia ao longo de 50 anos.
Em determinado momento, Ferjani se mudou para Túnis, a capital, onde se uniu ao grupo de seu antigo professor de árabe.
- A política estava presente desde o início - afirmou em uma entrevista.
Na época, a Tunísia era governada por Habib Bourguiba, que era tão secular que chegou a tomar suco de laranja em frente às câmeras de televisão durante o Ramadã, o mês de jejum dos muçulmanos. Bourguiba, no poder desde 1957, reprimiu os seguidores de al-Ghannouchi e, com a perspectiva da execução de muitos deles, Ferjani afirmou ter ajudado a tramar um golpe de Estado.
Dezessete horas antes de realizarem seu plano, Zine El Abidine Ben Ali, o ministro do interior do governo de Bourguiba, realizou seu próprio golpe. Dez dias mais tarde, em 17 de novembro de 1987, Ferjani foi preso. Ele passou 18 meses na cadeia, onde seus interrogadores o amarraram em uma posição que ele chamou de "frango assado" e fraturaram sua vértebra com uma barra de ferro.
Cinco meses após sua libertação, ainda em uma cadeira de rodas, ele treinou para conseguir caminhar por 45 metros, de modo que os seguranças do aeroporto não o notassem. Ele raspou a barba e pegou emprestado o passaporte de um amigo. Em seguida, embarcou em um voo para Londres, onde procurou abrigo.
A Londres para a qual Ferjani viajou transformou-se em uma espécie de polo da política islamista nos anos 1990. Al-Gannouchi chegou logo em seguida, unindo-se a Ferjani. Os salafistas da Arábia Saudita, misturados com seus adversários frequentes, os xiitas do Bahrein, encontravam mais características em comum em Londres do que em suas terras natais.
- No exílio as pessoas têm a sensação de que precisam umas das outras. Em casa, o ambiente nacional se impõe sobre você. As prioridades se tornam diferentes - afirmou Azzam Tamimi, pesquisador e ativista palestino radicado em Londres, autor de uma biografia de al-Gannouchi.
Ferjani comparou seus anos em Londres com o despertar intelectual pelo qual passou em Kairouan nos anos 1970. A reconciliação entre o islamismo e a democracia era tema de debates realizados em todo o mundo árabe desde os anos 1990, ainda que fossem frequentemente ignorados pelo ocidente.
Em meados daquela década, um jovem islamista egípcio chamado Aboul-Ela Maadi rompeu com a Irmandade e formou o Partido do Centro, declarando seu apoio às eleições e à alternância de poder e, o mais importante, a disputas e alianças com partidos não islâmicos. O xeque Yusuf al-Qaradawi, clérigo egípcio extremamente influente que vive em Doha, no Qatar, muitas vezes se alinhou com os progressistas.
Mesmo que a Irmandade ainda se ressinta de Maadi por sua deserção, ela adotou muitas de suas ideias que pareciam tão inovadoras em 1996. "Al-sama' wa'l-ta'a", era o velho lema da Irmandade, que pode ser traduzido como "ouça e obedeça".
- Isso acabou. A nova geração está dizendo que irá embora se as coisas continuarem assim. Há uma nova compreensão e uma nova energia - afirmou Tariq Ramadan, importante estudioso islâmico radicado em Londres e neto de al-Banna, fundador da Irmandade.
Em um animado dia de inverno na Tunísia, Ferjani estava sentado no escritório do Ennahda. Quase um ano se passou desde que ele retornou a Túnis, envolto na bandeira nacional e caminhando sem problemas pelo aeroporto. Naquele dia, seu humor estava sombrio. Durante os protestos, ativistas seculares denunciavam o califado que eles acreditavam que subiria ao poder depois da vitória do Ennahda em outubro.
Jornais que se opunham ao partido estavam repletos de histórias de abusos cometidos por islamistas puritanos e da suposta tolerância do Ennahda a práticas extremas. O debate cultural pareceu sobrepujar aquilo que na opinião de todos era mais importante: o estado calamitoso da economia.
- Francamente, nós estamos no poder - afirmou Ferjani.
Mas, em um momento menos defensivo, ele perguntou: "É realmente possível resolver 50 anos de problemas em apenas um mês, com um governo que tem apenas um mês de idade?". Na sala apertada, sua exuberância havia se transformado em seriedade e sua voz se tornou hesitante.
- Todos devem ser cuidadosos para não se deixarem levar pelo instinto ditatorial, não importa o que aconteça. Nós não podemos perder o espírito da revolução - afirmou.
Esse, segundo ele, era o desafio.