Cairo, Egito - Por mais de 12 anos, Khairat el-Shater liderou sua família, que inclui 10 filhos, seu vasto império comercial e o maior movimento islâmico do Egito, a Irmandade Muçulmana, de dentro da cadeia. A cada semana, ele organizava audiências dentro da prisão, onde jovens Irmãos Muçulmanos apresentavam dossiês sobre a organização, que chegavam às vezes a ter 200 páginas.
Seus funcionários também o visitavam com frequência, para pedir conselhos estratégicos sobre empresas de software, tecidos, produção de ônibus e móveis, além de outros negócios. E, antes de concordar com os casamentos de suas oito filhas, ele recebeu a visita de cada pretendente dentro do presídio.
Alguns dos noivos foram prisioneiros com ele, outros viajaram até lá, e cinco deles se casaram na sua presença, atrás das grades. Hoje, el-Shater, com 62 anos, exerce uma influência muito maior.
Um ano depois que a derrubada de Hosni Mubarak trouxe a liberdade a el-Shater, ele se tornou a voz mais influente dentro da liderança da Irmandade, uma nascente do Islamismo político que tem 83 anos de história, num momento em que o grupo se estabeleceu como o poder dominante dentro da política egípcia.
Com um controle rigoroso sobre o Parlamento Egípcio, o braço político da Irmandade está organizando a criação do próximo gabinete, enquanto el-Shater prepara cerca de 500 futuros oficiais para formar um governo de oposição.
Como principal arquiteto das políticas do grupo, el-Shater está supervisionando os planos para um novo Egito, negociando com seus atuais governantes militares o papel que desempenharão no futuro, moldando sua relação com Israel e com uma minoria interna de cristãos, e desenvolvendo as políticas econômicas que a Irmandade espera que irão ressuscitar a moribunda economia egípcia.
Com um nível de poder que ele nem sonhava ter quando ainda perambulava pelas prisões de Mubarak vestindo um agasalho esportivo branco, el-Shater hoje se reúne com embaixadores internacionais, executivos de corporações internacionais e escritórios de Wall Street, além de um exército de senadores americanos e outras autoridades, para explicar a visão da Irmandade.
Segundo ele, para a Irmandade, o Islã precisa de democracia, mercados livres e tolerância em relação a minorias religiosas. Mas ele também afirmou que as eleições recentes provaram que os egípcios desejam um Estado explicitamente islâmico.
E ele está guiando a sua criação a partir de uma posição que, segundo seus críticos, poderá minar o seu compromisso diante da democracia aberta: ele está no topo de uma organização misteriosa e hierárquica, moldada por anos de trabalho clandestino, que ainda exige que seus membros - inclusive os que estão no Parlamento - jurem obediência à posição de seus líderes, seja no campo religioso, beneficente, ou político.
- O ponto de referência islâmico regula a vida em sua totalidade, politicamente, economicamente e socialmente; não temos essa distinção entre religião e Estado - disse el-Shater em uma longa entrevista.
- A Irmandade Muçulmana é uma organização baseada em valores, que se expressa por diferentes meios políticos, econômicos, esportivos, sociais e relacionados com a saúde. Você não pode simplesmente pegar uma parte de um lugar e outra parte de outro - não é assim que as coisas são feitas.
Ex-esquerdista, el-Shater é hoje um empresário milionário e o maior financiador da Irmandade, e já foi reconhecido durante anos como o defensor mais importante da moderação e da modernização dentro do grupo.
No entanto, dentro do novo contexto da jovem democracia egípcia, seus críticos - que incluem tanto liberais quanto islamistas - o acusam de usar a compreensão abrangente do Islã adotada pela Irmandade como uma ferramenta de poder político.
Contra os dissidentes, que argumentam que, em uma sociedade livre, a Irmandade deveria permitir que seus membros decidissem sozinhos como aplicar o islamismo à política, el-Shater assumiu a visão tradicional que o grupo tem de si mesmo, de que é o guardião de um ponto de vista único, que os outros devem pegar ou largar.
Ele defende a visão tradicional que o grupo tem de si mesmo, de uma sociedade dentro de uma sociedade, onde a política é utilizada como apenas mais uma ferramenta, junto com a pregação e a caridade, para empurrar a sociedade na direção de um modelo islâmico. Ele liderou uma campanha interna de repressão a membros mais jovens, que procuravam modificar a cultura fechada e hierárquica da organização.
Além disso, também defendeu a expulsão de membros da Irmandade que discordassem das decisões tomadas pelo dominante Conselho Orientador - entre eles um famoso ex-líder da Irmandade, Abdel Moneim Aboul Fotouh, que hoje está concorrendo à presidência. Em uma entrevista, ele explicou que a Irmandade acredita que o conceito islâmico da "shura", ou consulta, significa democracia representativa.
Ele afirmou que o grupo apoia o direito dos indivíduos com pontos de vista mais seculares de competir em eleições diretas e justas. Caso surgissem discordâncias quanto à melhor maneira de aplicar os ensinamentos islâmicos à vida pública, a sociedade deveria contar com meios democráticos para resolver qualquer divergência.
Mas ele argumenta que os parâmetros para a escolha das políticas a serem adotadas devem ser estabelecidos por especialistas, que se baseiem não apenas na economia, na ciência política e em outras disciplinas, mas também em um profundo conhecimento do Islã.
- Com o tempo, será melhor contar com alguém que conheça os dois lados - ele disse.
No entanto, os liberais afirmam que, na prática, a visão da Irmandade já tornou o seu Conselho Orientador - onde el-Shater é a voz dominante - o verdadeiro supervisor do próximo governo do Egito.
- Hoje, o Egito está sendo governado de dentro do Conselho Orientador da Irmandade - disse em uma entrevista Mohamed Abu Hamed, um legislador declaradamente liberal, usando os eventos que ocorreram em uma festa recente na Embaixada Indiana para ilustrar sua tese.
Segundo Abu Hamed, políticos, diplomatas e empresários, todos passaram direto pelos representantes eleitos e foram cumprimentar el-Shater, da mesma maneira que costumavam fazer com Gamal, o filho e herdeiro de Mubarak.
- Isso é um indicador de onde se encontra o poder - disse Abu Hamed.
Filho de um mercador da cidade de Mansoura, el-Shater foi um ávido socialista durante seus anos de formação, sob o governo do presidente Gamal Abdel Nasser, lendo muitos livros, inclusive de marxistas ocidentais de meados do século 20. No entanto, depois da desastrosa guerra de Nasser contra Israel, em 1967, el-Shater entrou para o movimento estudantil.
Aos 18 anos, passou quatro meses na prisão, foi expulso da escola e se alistou precocemente no exército. Ele afirma que o que o atraiu para a Irmandade Muçulmana foi a abrangência da organização.
- Ela fala sobre a construção do indivíduo, da família, da sociedade e do Estado. Ela fala sobre economia, sociologia e cultura - ele disse.
Ele também passou a investir em seus próprios negócios e, com outro promissor empresário da Irmandade, Hassan Malek, fundou uma das primeiras empresas de software do Egito, a Selsabeel, que teve o exército egípcio como um de seus clientes. Então, em 1995, à medida que o poder de influência de el-Shater crescia dentro da Irmandade, o governo confiscou a empresa após um julgamento militar.
El-Shater foi condenado a uma das quatro penas de detenção cumpridas durante o governo de Mubarak. Ao todo, permaneceu 12 anos na prisão, mais que qualquer outro líder da Irmandade. Líderes da Irmandade afirmam que seu papel central nas questões financeiras do grupo fez dele um alvo preferencial, e hoje é um dos motivos de seu poder e influência.
No entanto, depois que el-Shater foi solto, em março do ano passado, muitos membros jovens da Irmandade e reformistas afirmam terem ficado desapontados com o homem que viram. Eles reclamam que o seu discurso de democracia e tolerância para o Egito não se estende para uma reforma da Irmandade.
- Fomos enganados - disse Mohamed al-Gibba, ex-integrante de 27 anos.
No contexto de um Egito mais aberto e democrático, alguns membros da Irmandade argumentaram que o grupo deveria permitir que seus integrantes participassem da política por conta própria, enquanto se concentra em seu trabalho missionário, em suas pregações e em suas ações de caridade.
Além de Aboul Fotouh, o candidato a presidente, muitos reformistas tentaram concorrer com plataformas pós-islamistas, entre eles alguns membros mais jovens que, contra a orientação dos mais velhos, ajudaram a dar início ao levante contra Mubarak. Apesar disso, el-Shater ajudou a liderança da Irmandade a criar um novo partido político - o Partido da Liberdade e da Justiça -, financiado e controlado pela própria Irmandade.
Os membros da Irmandade são proibidos de contestar publicamente as posições do partido. El-Shater afirmou em uma entrevista que o único motivo que levou a Irmandade a criar um partido ostensivamente independente foi que a lei egípcia assim exigia. Se não fosse por isso, ele afirma que as duas entidades seriam "uma só".
- Vocês têm duas escolhas. Ou vocês ficam na Irmandade Muçulmana e no seu partido, ou, se insistirem em outro partido, serão vocês que deixarão a Irmandade - el-Shater afirma ter dito a um grupo de jovens dissidentes da Irmandade.
Dissidentes afirmam que el-Shater forçou a conformidade até em controversas questões internas. Ele está supervisionando a revisão do material didático interno da Irmandade para que ele reflita uma postura mais tolerante em relação a Israel, à medida que o braço político do grupo é obrigado a lidar com os Acordos de Camp David.
Pessoas próximas a ele afirmam que ele começou a discutir as possibilidades de oferecer imunidade ou inspeção limitada dos orçamentos de defesa como moedas de troca para afastar suavemente os generais dominantes do poder. Ele também promove uma visão do Islã que inclui uma economia favorável a empresas e ao mercado livre.
- Eles reprimiram qualquer um que tivesse opiniões diferentes sobre a economia - disse Mohamed Habib, ex-vice Guia Supremo da Irmandade, que também deixou o grupo recentemente por causa da sua intolerância em relação a discordâncias políticas internas.
- A Irmandade é um grupo para muçulmanos, mas não é "o" grupo para muçulmanos - ele reclamou.
No entanto, autoridades dos Estados Unidos afirmam que, no momento, têm valorizado a eficácia tranquila de el-Shater.
- Ele é o cara dos bastidores. Ele é muito impressionante - disse o senador americano Lindsey Graham, republicano da Carolina do Sul, que participou de uma reunião recente com el-Shater e outros legisladores, na sua maioria republicanos.
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