Cochrane, Chile - No final de um trecho de 320 quilômetros de estrada não asfaltada, praticamente intransponível durante os longos meses de inverno e apenas um pouco melhor no verão, fica a tranquila comunidade de Cochrane. Por gerações, o isolamento criou uma existência bucólica, até mesmo provinciana, onde muito pouco se modificou.
Os campos da região foram divididos em pastagens para o gado e para as ovelhas. Contos populares romantizam o estilo de vida do gaúcho nas estepes abertas da Patagônia, compartilhando o mate em torno de uma fogueira. Mas apesar de todo o seu isolamento, esta aldeia se vê agora no centro de um acalorado debate nacional sobre o futuro - e alguns diriam, sobre a alma - da própria Patagônia.
A uma pequena distância da cidade está sendo planejado um conjunto de usinas hidrelétricas de US$ 10 bilhões conhecido como HidroAysen, o que levou a um clamor nacional contra o que os críticos consideram a destruição de um dos ecossistemas mais intocados do Chile.
No ano passado, milhares de manifestantes que se opunham à barragem saíram às ruas da capital, Santiago, enquanto centenas de outras pessoas entravam em conflito com a polícia em meio a nuvens de gás lacrimogêneo e canhões de água a poucos metros do palácio presidencial.
Mas dentro do campo de visão do projeto proposto, se encontra o caminho de uma visão completamente diferente para o futuro da Patagônia: os 267 mil hectares do Parque Nacional da Patagônia, que procura preservar a grandeza da região, recebendo dezenas de milhares de visitantes por ano.
Essas duas visões opostas a respeito da Patagônia ficam tão próximas uma da outra que parecem preparar o terreno para uma ruidosa batalha ideológica, deixando os moradores da região sem entender onde eles se encaixam. A inauguração do primeiro centro de formação profissional nessa aldeia remota da Patagônia foi um bom exemplo disso, um evento significativo, mas estranho.
O prédio é uma estrutura semelhante a uma pequena cabana de madeira e foi criado com o objetivo de transformar a população rural em mão de obra qualificada para a construção da usina.
Enquanto os homens da empresa parabenizavam os funcionários da cidade e da escola com tapinhas nas costas, os convidados de honra - um grupo de antigos vaqueiros e trabalhadores rurais, entre os quais estava Modesto Sepulveda, um gaúcho convertido de 27 anos - estavam tímidos em um canto, mordiscando empanadas e pratos de ceviche.
Sepulveda, um marido e pai de dois filhos de fala mansa, recebeu um certificado que reconhece sua formação básica em construção civil. Contudo, naquela noite ele estava mais filosófico do que festivo.
- O desenvolvimento está chegando e é melhor que nos adaptemos, porque mais cedo ou mais tarde nós não teremos outra opção - comentou Sepulveda com franqueza.
O projeto energético é um a parceira entre a Endesa, uma empresa ítalo-espanhola, e a Colbun, uma empresa chilena. Elas pretendem coletar a energia dos rios Baker e Pascua por meio de uma série de cinco hidrelétricas que iriam gerar 2.750 megawatts para cidades carentes de eletricidade no extremo norte do país.
Mas, ao passo que os manifestantes denunciam as ameaças à flora e a fauna, Maria Ester Quijanes, membro do Conselho Municipal de Cochrane, está mais preocupada com o fato de que o projeto irá criar uma classe de cidadãos privilegiados do que com as consequências ambientais da construção de usinas na Patagônia.
- Politicamente, eu concordo com as usinas porque acredito em independência energética, mas eu me preocupo com o fato de que elas irão criar um desequilíbrio social entre aqueles que serão capazes de se adaptar a uma cultura de trabalho diferente e aqueles que não serão - afirmou Quijanes.
A não ser por algumas exceções, a controvérsia que parece acompanhar a HidroAysen pelo resto do país, é surpreendentemente inexistente em Cochrane. Há uma explicação simples, de acordo com Luigi Solis, 33, que foi contratado para abrir trilhas no Parque Nacional da Patagônia.
- Eles convencem com o dinheiro.
A HidroAysen investiu substancialmente no futuro de Cochrane, apoiando projetos de infraestrutura, treinando centenas de pessoas para trabalhar nas usinas e prometendo treinar ainda mais pessoas, além de oferecer 150 bolsas de estudos para alunos do ensino médio que fizerem cursos universitários na área técnica.
A empresa também tem um escritório em Cochrane com uma política de portas abertas, onde os cidadãos podem examinar um modelo do projeto da usina hidrelétrica. A Conservación Patagonica, a fundação por trás do Parque Nacional da Patagônia, também direcionou suas forças para a construção de infraestrutura, mas isso passou despercebido pelo público.
Como consequência, sua imagem entre os moradores ficou prejudicada. A comunidade ficou indignada quando a fundação comprou e depois fechou a maior fazenda da região, contribuindo para aquilo que os moradores viam como a destruição de seu modo de vida tradicional.
Em 2004, foi realizada a compra de uma área de 70 mil hectares, posicionada de forma ideal entre duas reservas naturais, permitindo a formação de uma incrível área de proteção. Além disso, também não foi positivo para as relações o fato de que a fundação - e, portanto, a antiga fazenda - esteja sob o comando de uma forasteira, Kristine Tompkins, a ex-diretora da fabricante de roupas Patagonia.
Para jogar lenha na fogueira, ela é casada com o ambientalista Douglas Tompkins, cujos esforços pessoais pela preservação ambiental no Chile fomentaram sentimentos nacionalistas.
Existem todos os tipos de histórias exageradas sobre o parque, de preconceito contra as pessoas quem antes cuidavam da fazenda - na verdade, o parque tem 50 funcionários, aproximadamente o mesmo número que nos tempos da fazenda - a críticas de que os campos sem gaúchos permitiram o retorno das temidas onças-pardas.
- Ultimamente, nós temos organizado visitas para desfazer os mitos criados pelos moradores mais velhos a nosso respeito, ao mesmo tempo que encantamos os moradores mais jovens - afirmou Solis.
A fundação comprou mais terras, restaurou ecossistemas, recuperou as populações de cervos-sul-andinos e onças-pardas e abriu um sistema de trilhas. Ela também está construindo uma sede para o parque que incluirá um museu, um restaurante e cabanas feitas com as pedras de uma pequena pedreira dirigida pela fundação, com o interior decorado com madeira reciclada e os tetos feitos de cobre, o principal produto de exportação do Chile.
É um projeto ambicioso feito nos moldes dos parques nacionais de Yellowstone e Yosemite. Quando estiver concluído, o Parque Nacional da Patagônia irá unir os 186 mil hectares das reservas nacionais adjacentes com os 81 mil hectares que adquiriu, formando uma paisagem única que vai das estepes semiáridas da Patagônia a florestas temperadas.
- Parques de qualidade internacional atraem pessoas do mundo todo. Eu vi isso acontecer muitas vezes. Será uma tremenda oportunidade para desenvolver um novo setor nessa área se eles não construírem essas usinas - afirmou Tompkins.
Tompkins acredita que em poucos anos o parque poderia atrair cerca de 150 mil visitantes por ano, um número parecido com o de Torres del Paine, outro famoso parque da Patagônia chilena. E esses visitantes irão precisar de hotéis, do aluguel de equipamentos, de agências de turismo e de transporte.
- É claro, as pessoas falam sobre a expansão do turismo, mas ninguém realmente entende o que isso significa. É preciso preparar as pessoas se realmente quisermos desenvolver a indústria do turismo - afirmou Marcelina Catalan, 42, dona do Café Internet Mazal, o único cyber café de Cochrane, com seis computadores e uma conexão inconstante.
Aqueles que se opõem à HidroAysen e ao Parque Nacional da Patagônia afirmam que sua presença já trouxe problemas sociais e causou divisão entre os moradores dessa comunidade tão unida.
- De repente surgiu uma nostalgia do passado. Mas as pessoas se esquecem do quão absurdamente isolados nós estávamos antigamente - afirmou Rosa Gomez, 66, professora aposentada e historiadora da cidade.
Quando ela era adolescente, eletricidade e água potável eram luxos e a única forma de entrar e sair da cidade era a cavalo. Mesmo que fosse possível voltar no tempo, quem faria isso?
- Se eu tivesse que escolher entre a confiança e a harmonia que existiam entre os vizinhos naquela época e tudo o que temos agora, o presente leva alguma vantagem - comentou Gomez, pausando para considerar as opções.