Presidente da Federação Gaúcha de Futebol (FGF) desde 2004 e atual vice-presidente da CBF, Francisco Novelletto emprestou dinheiro a um amigo e empresário de futebol, em 29 de setembro de 2016, com recursos retirados da entidade esportiva estadual. O valor deveria ser ressarcido à instituição em poucos dias, mas a dívida seguia aberta em 25 de janeiro de 2017, quatro meses depois.
O empréstimo foi dado a Fernando Otto. Em mensagem enviada pelo aplicativo WhatsApp, ele apelou a Novelletto, pediu R$ 50 mil e disse que precisava do dinheiro para resolver pendências com jogadores de futebol.
"Amanha preciso de no minimo 50 mil pr pagar os 02 salarios de meus jogadores (sic). Tenho certeza que na proxima semana o Inter me paga e dentro de 15 dias recebo do Porto (sic). Preciso desse valor porque senao os jogadores nao vao entrar em campo (sic). Meu time esta certinho e vamos incomodar na copinha (sic). Me ajude.", escreveu Otto.
Ele se referia à Copa FGF, realizada no segundo semestre daquele ano pela entidade, envolvendo times do interior do Estado. A equipe em que Otto detinha jogadores naquela temporada era o Guarani de Venâncio Aires. Como empresário detentor dos passes, pretendia vender os atletas a clubes maiores depois de eventuais bons desempenhos. O pedido de Otto a Novelletto funcionou e o dinheiro foi colocado à disposição no mesmo dia. O presidente da FGF determinou a um assessor que procedesse a operação sob o argumento de que o amigo estava "F.....". Justificou, ainda, que o favor poderia ser retribuído no futuro.
"Vc e meu irmao mais velhhhooooo.Obg. (sic)", escreveu Otto ao ter a confirmação do repasse.
A troca de mensagens consta em relatório juntado ao processo da Operação Rebote, comandada pelo Ministério Público para apurar supostos desvios de recursos da gestão do Inter entre 2015 e 2016.
Otto foi investigado pela suposta prática do crime de estelionato contra o Inter, mas o motivo de ele ter se tornado alvo de denúncia do MP não guarda relação com os valores recebidos do caixa da FGF. No caso, o empresário é acusado de ter atuado em conluio com o ex-vice-presidente de futebol Carlos Pellegrini para lesar o Inter na negociação do zagueiro Réver. A Justiça aceitou esta denúncia e Otto, além de outros 13 acusados por diferentes delitos, se tornou réu em novembro de 2019.
O empréstimo da FGF tinha relação com um valor que o empresário esperava receber do Inter por intermédio do então vice-presidente de Finanças Pedro Affatato. Além de repassar os R$ 50 mil a Otto, Novelletto ficou de auxiliar nas conversas com Affatato para que o Inter pagasse um valor devido ao empresário. Quando o clube quitasse a pendência, Otto faria a reposição no caixa da FGF. Mas, na prática, não foi isso que ocorreu. Quase um mês depois do empréstimo, Novelletto passou a cobrar a devolução dos recursos e o cumprimento do acordo. Ele reclamou que Otto já teria recebido o pagamento do Inter, mas não havia feito o ressarcimento da federação, conforme acordado. Nas mensagens, o presidente da FGF indicava que aquela operação era inadequada e precisava ser mantida em sigilo.
"Fernando falando agora com Afatato sobre outro assunto dai me disse se tu havia pago os 50 mil Fgf, que ele já teria te dado cheque (sic)! Fernando não acredito que fizesse isso, Fernando a Fgf não é minha se algum órgão pegar eu ajudando um amigo como fiz contigo caiu na boca do povo e não sei mais o que. Cara te vira e vai devolver os 50 pau até amanhã! Te vira (sic)", redigiu Novelletto.
O presidente da FGF, além de ter usado o caixa da instituição para ajudar um amigo, atuou nos bastidores para evitar que jogadores de uma equipe deixassem de entrar em campo por falta de salário.
- Eles não iriam jogar a final da divisão de acesso - afirmou Novelletto (leia a íntegra da entrevista abaixo).
Ao ser cobrado, Otto argumentou que havia pego o cheque com Affatato somente na véspera, assegurando que findaria a pendência até o final daquela semana. O empresário disse que estava vendendo um imóvel em Porto Alegre, o que também garantiria a quitação. O caixa seguiu descoberto, duas cobranças se mostraram infrutíferas em novembro, até que Novelletto voltou a procurar Otto em 26 de dezembro de 2016.
"Fernando, na boa, repõe aqueles 50 mil Fernando (sic)! Passou dos limites! Aquilo não é meu", postou.
O tempo passou sem solução à dívida, até que a última cobrança juntada ao relatório da Operação Rebote ocorreu em 20 de janeiro de 2017: "Otto cadê 50? (sic)".
O empresário foi responder somente cinco dias depois, prometendo entregar um cheque pré-datado para 30 dias, assegurando que estava por receber dinheiro da venda de um apartamento e uma "bela grana do Porto e do Galatassaray", citando o clube português e o turco.
"Abs e desculpa", finalizou o empresário.
Procurado pela reportagem, Novelletto diz que a dívida foi quitada posteriormente com cheque assinado por Otto no valor de R$ 50 mil, com data de 30 de abril de 2017. O dirigente enviou uma imagem do documento.
O caso do empréstimo não motivou a abertura de inquérito pelo MP. O órgão requereu à Justiça autorização para compartilhar com diversas instituições e conselhos profissionais o conteúdo das investigações da Operação Rebote. São situações em que o entendimento aponta para possíveis infrações que devem ser analisadas e, eventualmente, punidas em comissões de ética. Neste contexto, a operação entre Novelletto e Otto poderá constar entre as situações remetidas pelo MP à Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O código de ética da entidade trata deste tema em quatro dispositivos.
Dispositivos do código de ética da CBF que coíbem condutas como a do caso do empréstimo
Artigo 5º (I) Usar o cargo, ou ativos da CBF, das federações, das ligas e dos clubes, para obter vantagens ou promoção pessoal, ou qualquer outra forma de favorecimento ou benefício pessoal indevido, para si ou para terceiros.
Artigo 5º (XII) Praticar ou omitir-se, quando na função de gestor da CBF, das federações, das ligas e dos clubes, de fraude ou gestão irregular ou temerária dos recursos financeiros, conforme especificados na lei e nos regulamentos da respectiva entidade da qual faça parte.
Artigo 6º (II) Observar a transparência nos processos orçamentários, na execução dos orçamentos, nas prestações de contas e na divulgação das demonstrações contábeis, bem como adotar os princípios contábeis reconhecidamente aceitos.
Artigo 9º (IV) Não utilizar-se do cargo para indevidamente intermediar, direta ou indiretamente, acordos ou transações comerciais.
Contraponto
O que diz Fernando Otto
Procurado pela reportagem, não atendeu as ligações e não retornou o pedido de contato.
O que diz Francisco Novelletto
Consta em relatório do Ministério Público que o senhor emprestou ao Fernando Otto R$ 50 mil, com recursos da FGF e, quatro meses depois, ele ainda não havia pago...
Ele pagou. Tá tudo quitado. Eram despesas que ele não havia pago. O Otto tinha despesas aqui. Foi emprestado para o clube (Guarani-VA). Foi pago uma folha deles. Eles não iriam jogar a final da divisão de acesso. E quando ele saiu do clube, a federação antecipou o pagamento dessa folha atrasada porque senão iria dar escândalo nacional, jogar com o Esportivo valendo vaga na Série A e o time não entrar em campo.
Nas mensagens registradas, Otto pede o dinheiro ao senhor em 29 de setembro de 2016, no mesmo dia foi disponibilizado, e lá em janeiro de 2017, quatro meses depois, ele ainda não tinha pago. Quando ele pagou? O senhor recorda?
Posso ver o dia que ele depositou e te mandar. Ele tocava o Guarani-VA, era o responsável pelo futebol, e deixou um monte de dívida lá, todo mundo empenhado.
Vocês eram amigos. Continuam sendo depois desse episódio?
Ele é maluco, né, mas sou amigo dele há 30 anos. O que ele fez foi um empréstimo aqui, em troca de cheques, para pagar salários. Ele iria receber não sei de quem. Mas foi cobrado. Ele pagou.
Consta nos registros que o senhor falou com Pedro Affatato para que o Inter pagasse um valor devido ao Fernando Otto. Ele recebeu o dinheiro, mas ainda assim não foi até a federação acertar as contas naquele momento.
Não sei, isso eu não sei te dizer, faz tanto tempo. Ele tinha um dinheiro a receber do Inter.
O senhor falou diversas vezes "a federação não é minha", indicando a gravidade do caso...
Ele não estava pagando no dia certo. Três meses depois, não tinha pago ainda. Aí comecei a cobrar e disse que isso aqui não é meu. Tem que pagar.
O senhor registrou essa operação no balanço da federação?
Sim, tem toda a entrada. Como ele era dirigente de um clube, eu antecipei para ele uma verba. Na saída dele, ficaram dois meses de salário atrasado.
O senhor acha que é papel do presidente da federação fazer empréstimos para empresários de futebol? Isso não interfere no resultado esportivo das competições? O senhor acabou ajudando um clube.
O presidente tem autonomia total. O que tu acha? Se tu olhar aqui hoje, menos o Grêmio, o resto todo deve. É para pagar salário. Os demais, já antecipei 60% da verba do campeonato do ano que vem.
O que está colocado é que foi um empréstimo de caráter pessoal ao Fernando Otto, com dinheiro da federação. Não foi para o clube...
Foi para fazer pagamento de jogadores.
Mas eram jogadores dele, que ele queria vender depois, já que é empresário...
Ele era o gestor do clube. Os jogadores eram todos dele. Ele terceirizou o clube, como eu já fiz por anos no São José. Só que ele queria mais dinheiro para pagar a folha no final. Aí também não emprestei mais. Quando ele saiu, aí emprestei para o clube (Guarani-VA), que está em aberto até hoje.