A contratação da empresa terceirizada OWL Gestão e Tecnologia pelo Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), entre junho e dezembro de 2016, está sob suspeita de irregularidades e de ter sido desnecessária. Relatório da Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage) aponta que a autarquia, ligada à Secretaria Estadual dos Transportes, desperdiçou ao menos R$ 422 mil no processo, além de ter usado de forma inadequada o argumento de "urgência ou calamidade pública" para acelerar a contratação. O trabalho "urgente", pelo qual a OWL recebeu R$ 616,8 mil, levou seis meses para ser iniciado, período em que equipe do próprio Daer executou o serviço.
Cartas-convite foram enviadas pelo órgão para cinco empresas consideradas aptas ao trabalho, mas o procedimento teria sido viciado: todas as contatadas, que apresentaram orçamentos, tinham sócios em comum.
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O contrato vigorou de 6 de junho de 2016 a 3 de dezembro do mesmo ano. A contratação foi conduzida pelo diretor de Administração e Finanças, Saul Sastre, indicação do PSB ao governo de José Ivo Sartori. Sete auxiliares e um gerente da empresa terceirizada seriam os responsáveis por protocolar e encaminhar processos, requerimentos e recolher taxas no prédio do Daer.
Valor três vezes acima da média apurada pela central de licitações
No segundo semestre de 2016, a Cage iniciou inspeção de rotina no departamento. Logo chamou a atenção a contratação dos serviços da OWL. Os auditores fizeram comparações, com ajuda da Central de Licitações (Celic), e verificaram o sobrepreço.
"Ao compararmos o valor da contratação efetuada pelo Daer com o valor de referência estabelecido pela Celic, observamos custo mensal adicional, ou seja, a maior, extremamente elevado, de R$ 70.378,71. No período de 180 dias, ou seja, durante a vigência do contrato, o valor a maior será de R$ 422.272,26. Esta diferença representa 3,17 vezes ou 217% acima do valor Celic", diz trecho da notificação da Cage enviada ao Daer, em 21 de novembro de 2016.
O decreto 52.768, de dezembro de 2015, editado pelo governo Sartori para regular a terceirização de serviços no Estado, traz regras que permitiam à contratada do Daer ter lucro mensal de R$ 5,4 mil. Mas a OWL alcançou ganhos de R$ 24 mil ao mês. Além disso, recebeu a cada 30 dias R$ 21,7 mil que não estavam justificados na planilha de custos do contrato.
Ao alegar "emergência ou calamidade", o Daer abriu mão do pregão eletrônico, que garante a disputa mediante anúncio prévio e supervisão da Celic, e optou pela licitação por carta-convite, em escolha direta de quem participaria. Venceria quem oferecesse o menor preço. As concorrentes selecionadas tinham entre seus sócios um trio de jovens empresários gaúchos, como mostram contratos sociais e suas alterações registrados na Junta Comercial, Industrial e Serviços do RS (Jucis-RS) e a ferramenta de consulta da Receita Federal. E-mails trocados entre o Daer e os empresários, obtidos pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI), mostram como eles respondem por várias empresas ao mesmo tempo.
Declarada vencedora, a OWL era liderada por Marcelo Shuch Pereira. À época, ele incluiu como sócio Michel Costa, que também recebeu carta-convite para participar da licitação com outras duas empresas de sua propriedade – em uma delas, era sócio do mesmo Pereira. Hoje, Costa é diretor-técnico da Procempa e presidente do Conselho de Administração da Carris, na prefeitura da Capital, onde assegurou lugar para que um dos empreendimentos do qual é sócio fizesse testes de GPS na frota da Carris.
Início do trabalho contraria emergência argumentada
A alegação para a contratação emergencial era o início da operação, em 4 de janeiro de 2016, do Sistema de Processos Administrativos Eletrônicos (Proa), software desenvolvido pela Procergs e adotado em todos os órgãos do Estado para a tramitação virtual de documentos. Em 14 de dezembro de 2015, o conselho de administração do Daer aprovou a terceirização. Mas a contratação da OWL só foi publicada no Diário Oficial em 3 de junho de 2016, e a empresa assumiu o serviço, de fato, a partir de 6 de junho.
Os acontecimentos contrariam a alegação de "emergência" para a terceirização. Por cinco meses, a operação do Proa no protocolo foi realizada por equipe própria do Daer. Em abril de 2016, a meta definida pelo governo estadual era de que os órgãos públicos abrissem pelo menos 60% dos seus novos processos pelo Proa. No Daer, neste período, o índice chegou a 95,61%. Ou seja, o time da casa superava com folga o objetivo.
Sastre argumentou, no processo de licitação, que o Daer sofria de "carência de pessoal". Mas, com a terceirização, a equipe de 15 pessoas do órgão (um concursado e 14 estagiários) foi substituída por um gerente e sete empregados da OWL – sete profissionais a menos.
Além disso, embora a autarquia pagasse pela presença de um gerente para coordenar o protocolo, um servidor concursado do Daer jamais deixou o setor, mesmo no período de terceirização. Por seis meses, um técnico rodoviário permaneceu orientando os empregados da empresa.
Dias antes do fim do contrato, em dezembro de 2016, a Cage notificou o diretor-geral do Daer, Rogério Uberti, sobre problemas com a OWL. Três dias depois, ele remeteu "com urgência" comunicação interna à Diretoria de Administração e Finanças. "Que seja exigida a devolução dos valores pagos a maior à contratada aos cofres do Daer e que as irregularidades apontadas não se repitam", determinou Uberti, que meses antes havia aprovado a terceirização no conselho de administração do órgão.
O Daer pagou os R$ 616,8 mil à empresa e não foi ressarcido até hoje. Sastre permanece no cargo. Os concursados e estagiários voltaram a realizar a atividade de protocolo.
A CRONOLOGIA DA CONTRATAÇÃO
Outubro de 2015 – Atendendo a pedido da Procergs, o Daer indicou servidores para treinamento de operação do sistema Proa. Mais de duas centenas de funcionários da autarquia receberam a capacitação.
Novembro de 2015 – Mesmo com tantos servidores treinados, a Diretoria de Administração e Finanças do Daer decidiu terceirizar a atividade no setor de protocolo. Alegando urgência, porque o Proa seria ativado em janeiro, abriu mão do pregão eletrônico e optou pela licitação por cartas-convite, enviada a cinco empresas de sócios em comum.
Dezembro de 2015 – Conselho de Administração do Daer aprovou contratação da OWL, que apresentou menor preço do que as outras empresas.
Janeiro de 2016 – Contratação da OWL atrasou e o sistema Proa começou a funcionar no dia 4, operado por 15 pessoas do próprio Daer.
Janeiro a maio de 2016 – Equipe própria do Daer percorreu sozinha quatro das cinco etapas de implementação do sistema Proa. Em abril de 2016, o time do Daer abriu 95,61% dos novos expedientes pelo software. Objetivo de atingir pelo menos 60% neste período havia sido largamente superado.
Maio e junho de 2016 – A partir de 6 de junho, OWL assumiu o serviço de protocolo do Daer. A essa altura, o sistema Proa, usado como justificativa para a opção por carta-convite, entrava no sexto mês de operação. A alegada urgência para contratar uma consultoria não se confirmou na prática. A fiscalização da Cage ainda apontou que o governo estadual não previa punição aos órgãos que não conseguissem cumprir o calendário de implementação do Proa. Para a Cage, isso descaracteriza a "emergência ou calamidade".
Novembro de 2016 – Notificado das falhas, diretor-geral do Daer, Rogério Uberti, emitiu comunicado "urgente" ao diretor de Administração e Finanças, Saul Sastre, determinando devolução do valor pago à OWL e que "as irregularidades apontadas não se repitam". A autarquia não foi ressarcida e Sastre segue no cargo.
Dezembro de 2016 – Fim do contrato com a OWL e fracasso na tentativa de renovar por mais seis meses. Equipe própria do Daer volta a ficar responsável pelo serviço de atendimento ao público no protocolo.
CONTRAPONTOS
Saul Sastre, diretor de Administração e Finanças do Daer
Sobre a necessidade de declarar “urgência ou calamidade pública” para a licitação por carta-convite
"Tínhamos aqui um método arcaico de trabalho, sem padronização de processos, estagiários sem a devida formação. Apesar de a gente ter atingido alguns níveis dentro do Proa, o Daer estava andando para trás em termos de atendimento. As atribuições do protocolo sofreram aditivos. Diante disso, resolvemos profissionalizar o atendimento. Sempre quis fazer um projeto inovador que viesse a melhorar o atendimento no setor. Melhorou significativamente. Tínhamos mau atendimento, perda de prazos judiciais, tudo isso justificou o contrato emergencial. Estamos atendendo muito mal depois do final da terceirização. Existe processo de licitação para terceirizar (o protocolo). Hoje, tenho vergonha do atendimento do Daer. Gostaria que fosse licitado e que a gente retomasse o bom atendimento."
Sobre o sobrepreço de R$ 422 mil em seis meses e o pagamento de R$ 21 mil ao mês sem justificativa nas planilhas de custo
"Não existe superfaturamento e a planilha foi arrumada. A Cage entende que a empresa deveria devolver o valor. Estamos aguardando se o Tribunal de Contas vai apontar ou não. Se apontar, a gente entra em contato e faz o procedimento de pedir o ressarcimento. A princípio, o Daer entende que está tudo correto."
Sobre o comunicado enviado pelo diretor-geral do Daer, Rogério Uberti, determinando a busca por ressarcimento – o que não aconteceu – e que as irregularidades não se repetissem
"Mostrei para ele (Uberti) que a tabela estava correta, e que aguardássemos os órgãos de controle. É o entendimento correto dentro da administração, não precisaria essa precipitação. Encerramos o processo. Estamos aguardando os órgãos de controle. O que houve foi uma notificação da Cage."
Sobre a contratação via carta-convite, enviada para cinco empresas com proprietários em comum
"Fizemos a tomada de preço e demorou a contratação. Nesse meio tempo, eles devem ter mudado. Não houve isso (empresas com donos em comum). Se houve depois, a gente não tem esse controle. Na época do certame, eles estavam separados. Enviamos as cartas-convite e foi o que deu. Hoje, tudo é feito por pregão eletrônico, até para não passar por esse tipo de coisa. Se eles se conheciam ou não se conheciam, não sei. Não posso dizer que eles não se conheciam. O que posso dizer é que a gente precisava colocar uma estratégia de atendimento para fora."
O que diz Rogério Uberti, diretor-geral do Daer
Está em férias e não se manifestou.
O que diz o DAER, em nota oficial
"A atual gestão do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) está ciente dos apontamentos da Controladoria e Auditoria-Geral do Estado (CAGE) e tomando as devidas providências. Desde outubro de 2016, estão sendo adotadas medidas visando ao esclarecimento e à transparência da contratação dos serviços. Assim que notificado, o departamento optou pela não renovação do contrato com a empresa que era responsável pelo protocolo, cujo término do vínculo com o órgão ocorreu em dezembro do último ano. Desde então, a determinação da Diretoria Geral é de que sejam atendidas todas as demandas do órgão de controle. Será instalada uma sindicância interna para apurar as responsabilidades e ações contrárias ao que foi determinado. O Daer está tomando uma postura proativa diante das circunstâncias e garante que, se houver irregularidades, haverá penalização dos responsáveis".
LAB308 (nome atual da OWL)
Afirma, via nota assinada pelo advogado Luiz Gustavo Garrido, que "prima pelo cumprimento de todas as obrigações legais e não possui conhecimento de quaisquer irregularidades cometidas. Ainda, os sócios administradores à época, incluindo-se Marcelo Pereira, encontram-se totalmente desligados da empresa, tendo em vista a venda de suas participações acionárias. Por fim, a LAB308 está à disposição da justiça para todos os esclarecimentos pertinentes".
Marcelo Pereira, proprietário da OWL à época da assinatura de contrato
Sobre o sobrepreço de R$ 70 mil ao mês, R$ 422 mil em um semestre
"Desconheço este número de excesso de R$ 70 mil, nunca recebemos nenhuma notificação a este respeito. Acredito que esta análise seria responsabilidade do órgão público contratante."
Sobre o lucro da OWL ter ultrapassado em mais de R$ 18 mil ao mês o limite permitido pela norma de terceirização de serviços do governo estadual
"No nosso entendimento, caberia a fiscalização ao órgão público e nunca recebemos nenhuma notificação a respeito. É da natureza da empresa privada, que se dedica a atos de comércio, obter lucros. A documentação exigível, inclusive planilha de custos, foi enviada na época da proposta sem questionamentos posteriores."
Sobre o fato de a OWL ter recebido R$ 21,7 mil ao mês que não estavam justificados na planilha de custos do contrato
"Pelo que lembro, no início houve algumas divergências na forma de preencher a primeira planilha, mas no desenvolver da prestação de serviços as mesmas foram corrigidas. Em nenhum momento fomos notificados ou houve reclamação a esta questão."
Sobre as empresas convidadas a apresentar orçamento pelo Daer terem proprietários em comum
"De minha parte, não houve formação de cartel e tampouco má-fé. Entendemos que quem deveria fazer a separação do joio do trigo é o órgão contratante."
Michel Costa, sócio da OWL no período do serviço no Daer e atual diretor-técnico da Procempa
A reportagem contatou assessores de imprensa da prefeitura de Porto Alegre, onde Michel Costa é diretor-técnico da Procempa, desde a última quarta-feira. Até a publicação deste texto, não houve resposta.