SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Conforme crescem no Brasil os casos de coronavírus e as mortes por Covid-19, crescem também os indícios de que eles são muito mais numerosos do que apontam as estatísticas oficiais.
O aumento nas internações por problemas respiratórios e o crescimento no número de enterros nos cemitérios indicam que o país registra menos do que deveria -e em uma velocidade aquém da necessária.
Um dos mais fortes indicativos de subnotificação é o aumento de casos de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) desde que o primeiro caso por coronavírus foi detectado no Brasil, em fevereiro.
Os pacientes que chegam ao serviço de saúde com SRAG, um conjunto de sintomas respiratórios que pode incluir falta de ar e febre, têm seus dados enviados a um sistema gerenciado pelo Ministério da Saúde. As internações e óbitos por esse motivo têm notificação obrigatória no país.
Segundo dados disponíveis no site do Ministério da Saúde, as hospitalizações por SRAG desde o início do ano até a terça-feira (28) já somavam mais de 72 mil.
No mesmo período de 2019, esse número foi de 13,5 mil -um aumento de 430%.
A SRAG pode ser causada por outros vírus respiratórios, como o H1N1, agente infeccioso da influenza A. Bactérias e fungos também podem levar aos sintomas. Mas, segundo os especialistas, o crescimento fora do comum nas internações por motivos respiratórios tem forte influência da Covid-19.
Na terça (28), data da última atualização dos dados de SRAG até a publicação deste texto, o Brasil contava mais de 71mil casos confirmados da Covid-19. O número de mortes causadas pelo novo coronavírus no país superava as 5.000.
Devido à escassez de testes para detectar a Covid-19, a orientação dada aos profissionais de saúde é de que, entre a população comum, apenas pacientes em situação mais grave passem pelo exame. Além desses, têm acesso a exames profissionais de saúde e de segurança.
Casos que não chegam à internação também não geram registro no cadastro de SRAG. Por outro lado, espera-se que todos os pacientes de SRAG sejam testados.
A demora no processamento dos testes, porém, pode significar que, entre eles, haja mais doentes de Covid-19 do que se sabe.
Por exemplo, na semana entre os dias 19 e 25 de abril, 10.807 pessoas foram internadas com SRAG.
Desse total, 1.580 pacientes receberam o resultado positivo para o novo coronavírus. Os exames de outros 7.212 pacientes ainda aguardavam o resultado até a consolidação do levantamento. Apenas 7 tiveram diagnóstico de influenza A ou B.
Estudos apontam que cerca de 80% dos infectados pelo novo coronavírus não têm nenhum sintoma da doença ou apresentam sintomas leves.
"Se conseguíssemos testar todos os casos que aparecem, é provável que a maioria fosse Covid-19", diz Patrícia Canto, pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Assim, em uma estimativa inicial, para cada dois casos confirmados há cerca de oito infectados que potencialmente passam despercebidos e não são contabilizados pelo sistema de saúde.
O efeito mais imediato da subnotificação é a subestimação do número de casos e do impacto da doença, diz Canto. "Sem esse dado, não é possível diferenciar as áreas com maior risco nem saber para onde direcionar os profissionais e os leitos", afirma.
Para Ana Freitas Ribeiro, infectologista no Instituto de Infectologia Emilio Ribas, de São Paulo, há a necessidade de realizar muito mais exames do que o país faz atualmente. "Olhar apenas para os casos graves não vai nos dizer tudo que precisamos saber sobre a doença", afirma.
A falta de testes é a principal barreira para o levantamento dos dados e, mesmo quando o exame é feito, há a chance de erro no resultado, gerando falsos negativos.
No início de abril, a Folha de S.Paulo publicou depoimentos de trabalhadores da área da saúde em diferentes cidades que relatavam uma subnotificação gigantesca da doença. Em alguns estados e municípios, havia, à época, 1 caso informado para cada 30 ou mais episódios em que pacientes poderiam estar doentes sem que fossem registrados.
Países que se saem melhor no combate à doença, como Coreia do Sul e Alemanha, testam uma parcela maior da população do que os países que têm pior desempenho de barrar o avanço do coronavírus. "Ampliar a testagem para saber como a doença está se comportando é uma das melhores estratégias", diz Ribeiro.
Com esses dados em mãos, os governos podem verificar a eficiência das medidas adotadas ou definir qual o melhor momento para afrouxar o distanciamento social, por exemplo.
"Esses números atualizados também são importantes para saber se um bairro ou uma cidade precisa de um bloqueio mais rígido para evitar que a doença se espalhe", afirma Canto, da Fiocruz.
O aumento na movimentação em alguns cemitérios do país também é apontado como indicativo da subnotificação.
Segundo reportagem publicada na Folha de S.Paulo na segunda-feira (27), um único cemitério de Manaus, que recebia cerca de 30 enterros por dia antes da pandemia, chegou a um pico no domingo (26), quando 142 sepultamentos foram realizados.
O número de mortes no estado de São Paulo teve um crescimento de 1.481 casos acima da média dos últimos quatro anos para o mês de março. No mesmo mês, foram registrados 731 óbitos por Covid-19.
Embora o Ministério da Saúde e as secretarias de saúde dos estados estejam usando os dados disponíveis para pautar suas ações, a demora do resultado dos testes faz com que as autoridades trabalhem baseadas no passado.
"Quando vemos os dados da mortalidade, olhamos para pacientes que adoeceram há pelo menos uma semana. Com esses números nós estamos sempre correndo atrás do prejuízo, eles nos informam o que já passou", diz Canto.
Algumas das mortes causadas pelo novo coronavírus chegam a levar mais de um mês para terem a causa confirmada. De acordo com o Ministério da Saúde, 86% das mortes ocorridas sob suspeita de Covid-19 já tiveram a investigação concluída.
O secretário de vigilância em saúde do ministério, Wanderson Oliveira, disse ainda que estados e municípios são orientados a priorizar a inserção de óbitos com suspeita ou confirmação de Covid-19 no sistema, para agilizar o processo de investigação dessas mortes.
A falta de testes também causa uma distorção na taxa de letalidade da doença no país -a porcentagem de pessoas infectadas pelo vírus que morrem pela Covid-19. Com os números oficiais atuais, a letalidade da doença no país está próxima de 7%.
Segundo estimativa divulgada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no início de março, esse número deve estar em torno de 3,4%. Para Canto, esse é outra pista da subnotificação. "A taxa de mortalidade leva em consideração os casos testados; com uma vigilância maior, mais testes, esse número tende a cair", diz a pneumologista.