Originalmente, os reis eram juízes supremos, legislavam, judiciavam e executavam a sentença. Assim foi com Hammurabi (c. 1.750 a.C.) e com os faraós, e ambos, diga-se, declaravam defender o oprimido, como se lê no código babilônico ou no conto O Camponês Eloquente, do livro Escrito para a Eternidade, UnB, 2000, literatura egípcia traduzida. Na Grécia antiga, a palavra basileus designava simultaneamente rei e juiz. Uma vez que a realeza declinou em prol da república, perdurou nesta palavra a função judicial; Hesíodo, sucessor de Homero, ao xingar juízes corruptos, os chama de baseileis dorophagoi, juízes comedores de presentes; ao rei persa, estrangeiro hostilizado, chamavam ho basileus, O Rei.
Os gregos iniciaram a separação entre autocracia e jurisdição, e desfrutaram dela como parte da vida da pólis. No Império Romano, porém, as prerrogativas judiciárias foram transferidas das assembleias para o Senado, controlado pelo imperador, que os gregos chamavam basileus. À exceção dos gregos antimonárquicos, a função judicial sempre foi atributo de poder do soberano. Eis a fonte antiga de um problema moderno e desafio da democracia: discernir o poder autocrático da função judicial.
A realeza medieval e as monarquias absolutistas seguiram esse padrão histórico, com que se bateu o iluminismo do século XVIII. Ao desenhar a nova teoria do Estado, Montesquieu quis suprimir excessos e equacionar a ordem pública, com a separação de poderes, mas a esta reforma recente sobreviveu um lastro de afetos antigos, pulsões de poder que gritam como os desejos recalcados descritos por Freud, e que requerem um superego social, vigília cívica contra a latente irrupção de um recuo à condição pré-moderna. Os regimes totalitários foram também protagonistas de abusos judiciais. O Estado contemporâneo é imaturo e, em tempos de crise, cenário fácil para desvirtuamentos.
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Parte do imbroglio hoje vivido no Brasil decorre das tensões entre autoridade judicial e poder político. Este posiciona-se nas disputas sociais, aquele deve distanciar-se e arbitrar de acordo com normas de que não é autor. Simples, mas dificílimo, dada a ambição de poder que cresce em quem o tem parcelado e sonha com plenitude. Esse drama agrava-se quando parte da magistratura flerta perigosamente com os confortos da oligarquia, pior inimigo da república no Brasil.
Voltemos à fonte. Ao fundarem a isonomia, os gregos construíram o conceito ético, jurídico e político necessário para a democracia: hybris, excesso, desmedida, o transbordamento da esfera de poder e responsabilidade de cada indivíduo em uma ordem jurídica ponderada. À sociedade cabe utilizar essa palavra para controlar as pretensões que podem aniquilar a democracia. No apogeu da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, o Coro canta: hybris phyteuei tyrrhanon, o excesso nutre o tirano (v. 863).
Moro e Lula, ou o judiciário e o PT, eis o drama; Estado, sociedade e modernidade, eis o que está em disputa. Não faltará quem apoie os excessos do juiz, que atende a clamores e responde à conhecida carência de autoridade patriarcal na restauração da ordem, mas visto em escala histórica, e considerando-se o fundamento da democracia, esta hybris engendra males de efeitos sórdidos e difícil superação. Deveríamos ler com mais atenção a tragédia grega ou Shakespeare antes que o mundo se desfaça a nossos pés – e pelo prazer de pensar o poder com a sabedoria de poetas máximos.
* Francisco Marshall escreve mensalmente no Caderno DOC.