Plantões dominicais no hospital de caridade de São Francisco de Paula costumam ser tranquilos. Vítimas de pequenos acidentes domésticos e bêbados que arranjam briga no bar costumam ser a maior parte dos 20 atendimentos registrados em média. Na manhã do último domingo, a maior preocupação do enfermeiro plantonista Daniel Pedroso era com a saúde de um bebê prematuro, nascido de 34 semanas, que inspirava cuidados.
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Chefe de enfermagem, Pedroso ainda organizava o dia em sua sala por volta das 8h, quando viu pela janela que o céu se fechava e escurecia para o lado norte da cidade. Prevendo chuva, fechou a janela e se encaminhou para o atendimento ao bebê. Ao retornar, percebeu que a movimentação junto à sala de emergência fugia do comum. Naquele setor, duas técnicas de enfermagem e uma médica atendiam os primeiros daqueles que seriam ao todo 80 feridos pelo maior desastre natural já registrado no município. Era só o início de uma manhã caótica.
– Trabalhei muitos anos em Gramado e lá já tinha atendido casos de ônibus acidentados, com 30 ou 40 feridos. Mas nunca algo dessa dimensão. Nenhum hospital do mundo tem estrutura para atender 80 pacientes chegando ao mesmo tempo – diz o enfermeiro.
Alertados pelas escassas notícias que circulavam sobre a tempestade, aos poucos a equipe encorpou com a chegada espontânea de funcionários que estavam de folga e até uma enfermeira de férias, que assumiu o cuidado do bebê prematuro. Em uma hora, já eram pelo menos oito enfermeiros e quatro médicos dividindo o atendimento aos flagelados, a maioria com cortes. Coube a Daniel fazer a triagem dos casos por gravidade e encaminhar os pacientes para atendimento.
– Era preciso organizar e eleger prioridades. No meio disso tudo chegou um óbito, que tivemos de encaminhar a parte burocrática. Quando olhei no relógio achando que eram 10h, já era meio-dia – lembra.
O primeiro paciente foi também um dos casos mais graves do dia. O jovem Willian Faistauer, 13, chegou com um corte profundo na cabeça, no osso frontal. O adolescente foi arrancado pelo vento dos braços de um irmão mais velho, sendo arremessado de encontro aos escombros. A médica Clarissa Both, que fez a suturação, conta que ainda não havia visto algo igual.
– Era um ferimento muito profundo. Nunca tinha visto uma sutura tão feia, que demandasse tanto. Ao longo da manhã, foram chegando um caso após o outro e nós tínhamos que avaliar muito rápido o que fazer. Foi uma situação muito grave, porque as pessoas estavam dormindo e as casas caíram em cima delas – comenta a médica, natural de São Chico e que nesta terça-feira estava em Porto Alegre, onde mora.
Com a cidade sem energia elétrica, foi preciso confiar em um gerador com pouco combustível para garantir a continuidade do serviço.
– Ficamos preocupados porque o equipamento estava com pouco óleo diesel e a maioria dos postos estava sem gasolina. Mais tarde conseguimos uma bomba de 130 litros em um deles e a RGE cedeu outro gerador, mas acabou não sendo necessário. Como não precisamos fazer cirurgias, o consumo também foi baixo – explica o administrador do hospital, Eduardo Iotti.
A situação foi controlada por volta do meio-dia, com apenas três casos que demandaram internação. Foi a vez de voltar as atenções para parte da equipe que teve suas casas ou a de familiares afetadas comunicação restrita pelo estrago em antenas de telefonia, informar-se sobre a situação dos entes queridos foi um desafio a mais para a equipe do hospital. Daniel Pedroso e Eduardo Iotti agradecem não só pela mobilização do corpo de funcionários no dia atípico, mas também à solidariedade de municípios vizinhos, como Gramado, Canela e Taquara, que disponibilizaram ambulâncias e enfermeiros para ajudar. Só assim foi possível encaminhar feridos mais graves a outros hospitais da região.
– Pela dimensão da tragédia, a impressão é de que poderia ter havido muito mais perdas humanas. Depois que a poeira baixou, percebi uma solidariedade tão grande que tenho certeza de que logo os bairros estarão lindos – acredita Daniel, um dos muitos heróis de 12 de março em São Chico.