O destino de um patrimônio bilionário, que deveria ser devolvido à União pelas concessionárias de telefonia fixa ao final dos contratos, está no centro de polêmica sobre a futura Lei Geral de Telecomunicações, ainda não sancionada pelo presidente Michel Temer. Parlamentares de oposição sustentam que o marco legal garantirá um "presente" de mais de R$ 87,3 bilhões às empresas, que refutam a alegação. A questão provoca divergências no governo federal e promete uma batalha jurídica no Supremo Tribunal Federal (STF).
A discussão, que já está no STF em razão da forma como a lei foi aprovada pelo Senado, trata dos bens reversíveis da telefonia fixa. Pela atual legislação, ativos repassados às empresas na privatização do setor na década de 1990 deveriam retornar à União em 2025, ao término das concessões. A nova lei aponta outro caminho: as teles ficariam com o patrimônio, tendo de investir o valor equivalente em suas próprias redes. A prioridade é ampliar a oferta de banda larga.
– É uma transferência gratuita de patrimônio público para a iniciativa privada, sem nenhuma contrapartida de geração de emprego – afirmou a senadora Vanessa Grazziotin (PC do B-AM), após reunião com a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, que pediu ao Senado informações sobre a aprovação da lei.
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A OAB e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) criticam o marco legal. Há divergências sobre a quantidade e o valor do patrimônio em jogo. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) sinalizou que os bens valeriam cerca de R$ 20 bilhões, enquanto o Sinditelebrasil (sindicato das teles) estima em menos de R$ 10 bilhões. As empresas sustentam que só retornariam à União estruturas empregadas na telefonia fixa, ou seja, imóveis usados em outros serviços, como internet e TV por assinatura, continuariam com as operadoras.
Dados do Tribunal de Contas da União (TCU) apontam que a relação envolve mais de 8 milhões de bens, como imóveis, redes de cobre e equipamentos. Esse patrimônio somaria R$ 105 bilhões a preços de 2013. Por outro lado, há R$ 17,7 bilhões investidos pelas operadoras em suas redes que não foram amortizados. A diferença fica em R$ 87,3 bilhões.
Essa auditoria apontou problemas no inventário de bens mantido pela Anatel. A apuração registrou que "são tratados praticamente da mesma forma" itens diversos como baterias no fim da vida útil, cabos em uso e terrenos. A futura lei prevê que a Anatel terá seis meses para atualizar o levantamento dos ativos, em parceria com o TCU.
Presidente do Sinditelebrasil, Eduardo Levy nega que haja um "presente" na nova lei. Ele argumenta que o marco permite às empresas solicitarem a mudança do regime de concessão para o de autorização. Se o pedido for aprovado pela Anatel, o valor dos bens da telefonia fixa iria para banda larga em áreas de escolhas do governo federal, com baixo interesse comercial.
– A lei aprovada antes das privatizações diz que, no dia em que terminar a concessão, é feito o cálculo dos bens necessários à operação do telefone fixo. Apenas esses bens são transferidos à União. E se a telefonia fixa acabar em 2025, qual o valor que voltará ao governo? Zero – afirma.
Levy nega que as empresas ficarão livres de gastos com a universalização da telefonia fixa. Segundo ele, haverá obrigação de ampliar a cobertura em municípios que só dispõem de telefone fixo. Outra polêmica é a possibilidade de converter em investimentos nas redes cerca de R$ 20 bilhões em multas aplicadas pela Anatel às teles. Seria saída para evitar a judicialização das multas, que pode se arrastar por anos.
Tramitação do projeto
- A nova Lei Geral de Telecomunicações chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Treze senadores entraram com mandado de segurança para evitar que o novo marco legal possa ser sancionado pelo presidente Michel Temer. Alegam que ocorreram erros na tramitação do projeto. OAB e parlamentares de oposição preparam novas ações questionando o mérito da proposta e a composição da lista de bens reversíveis.
- A nova lei foi aprovada em 6 de dezembro pela Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional do Senado em caráter terminativo, sem passar por outras comissões e plenário. Parlamentares tentaram recorrer, mas tiveram os pedidos negados.
- Com a polêmica, o Palácio do Planalto aguarda a posição do STF para definir se veta ou sanciona o ponto da legislação que trata dos bens reversíveis. Ministro da Ciência, Tecnologia e Comunicações, Gilberto Kassab defende a nova lei. Outros auxiliares próximos de Temer alertam sobre a reação negativa à medida.
- "Estamos propondo mudanças em aposentadorias e cortes de gastos, não é o momento para qualquer ato que possa ser interpretado como presente", diz um aliado de Temer.
- Antes do imbróglio se tornar público, a sanção era dada como certa, diante da necessidade de modernizar a legislação e atrair investimentos, em especial para a Oi. No governo, existe o receio de que, postergando a decisão sobre os bens reversíveis, a polêmica reapareça em 2025, ao final dos contratos de concessão.
"Não há presente bilionário", diz Juarez Quadros
Presidente da Anatel, Juarez Quadros nega, em entrevista a Zero Hora, que a Lei Geral de Telecomunicações "dará um presente" às concessionárias de telefonia fixa na questão dos bens reversíveis da União. Confira os principais trechos.
Haverá um presente bilionário para as concessionárias de telefonia fixa?
Não há essa previsão na lei que está sendo apreciada. Em 2013, o Brasil tinha 47 milhões de telefones fixos. Em outubro de 2016, eram 42 milhões. O serviço está em declínio. O que vai acontecer com os ativos? Se um bem é industrial, o valor de aquisição é depreciado a cada ano. A nova lei é boa, mas o ideal é que esse procedimento legal já tivesse ocorrido.
A polêmica trata dos bens reversíveis da telefonia fixa, que precisariam ser devolvidos à União em 2025. O que são esses bens?
Apenas bens vinculados à exploração da telefonia fixa em regime de concessão. No caso dos prédios, tem de ver, porque há muito prédio que já não é utilizado na telefonia fixa. Vindo do sistema da antiga CRT, a Grande Porto Alegre, provavelmente, tinha quase 30 prédios da concessão. Hoje, a organização que iniciou a exploração em regime de competição em telefonia fixa, a GVT, pode atender à região em um edifício único, porque os equipamentos são menores, não são necessários prédios imensos. Se deixarmos os edifícios (na lista de bens), em 2025, alguém vai querer comprá-los cheios de equipamentos obsoletos? Certamente não. Qual é a oportunidade que a lei promove? Ver se tudo isso tem valor hoje, lembrando que deve ser menor daqui a cinco anos. Você pega o valor e o transforma em obrigação de investimento pela empresa em serviços modernos, tipo banda larga.
Dados do TCU indicam R$ 105 bilhões em bens reversíveis. É correto o valor?
Até entendo que seja o valor correto, o problema é que é o valor histórico da aquisição (no momento da privatização), sem considerar a depreciação. Vamos dar um exemplo: compro um carro e, anos depois, quanto é que vou conseguir pelo carro usado, ainda que bem conservado? Esses bens da telefonia fixa não podem ser analisados apenas pelo custo da aquisição. Você tem de fazer o desconto. As empresas fazem isso porque são obrigadas por lei. Ao publicarem seus balanços, elas têm a conta específica de depreciação, com informação específica que determina qual é o critério.
Equipamentos tecnológicos se desvalorizam com o tempo, mas e os imóveis?
Será um fluxo de caixa descontado. A conta não é tão simples. Falando de terrenos, se uma prefeitura entender que determinado terreno (que era seu) foi liberado para a aplicação de serviço público, ela pede a reversão do terreno para o município. A prefeitura justifica que precisa da área para fazer praça, escola, hospital. Tem ocorrido casos assim.
Como ter a certeza de que as empresas vão fazer os investimentos?
Os projetos apresentados terão de ser aprovados e acompanhados pela Anatel. Além disso, o valor envolvido precisa de garantia, uma carta de fiança ou algo desse tipo, no equivalente ao custo do investimento.
Num caso hipotético, uma empresa tem R$ 1 bilhão em bens reversíveis. O patrimônio ficará com ela em definitivo somente depois da execução do investimento?
Ela vai executar o plano, pedir a fiscalização e, se isso ocorreu, a Anatel devolve o valor. Se a empresa não realizar os investimentos, os bens voltam para a União? A agência executa a empresa. Ela perde parte do valor que deu em garantia.
Parlamentares criticam o perdão das multas aplicadas às concessionárias, que seriam revertidas em investimentos. Haverá perdão?
Não há perdão. Também vai ser transformado em obrigação de investimentos, e as empresas vão ter de obedecer. Daí a exigência da garantias, que a lei determina.
Com a previsão de investimentos em banda larga, o que mudará para o usuário?
A tendência é fazer com que esses serviços, principalmente de banda larga, tenham não só um menor preço, mas também melhor qualidade.