Um dos principais países da União Europeia, a França quer retomar os investimentos no Rio Grande do Sul. Refazer antigos laços e construir novas parcerias foram objetivos da primeira visita do embaixador francês no Brasil, Laurent Bili, ao Estado, na semana passada. Ex-representante na Tailândia e na Turquia e conselheiro técnico da presidência entre 2002 e 2007, durante o governo Jacques Chirac, o diplomata é fã da cultura gaúcha, que aprendeu a admirar graças à leitura de O Continente, de Erico Verissimo.
A admiração é tanta que, em sua passagem por Porto Alegre, conseguiu que sua delegação organizasse um encontro com o escritor Luis Fernando Verissimo, por meio da Aliança Francesa. Nesta entrevista, concedida durante visita à Redação de ZH, Bili fala sobre o impacto da ameaça terrorista na França e o equilíbrio entre liberdade religiosa e o laicismo.
Leia mais
Fã de Erico Verissimo, embaixador da França tem encontro com Luis Fernando
Grã-Bretanha, França e EUA criticam Rússia por bombardeios em Aleppo
A Paris do aniversariante Luis Fernando Verissimo
A seguir, leia a síntese de suas declarações:
Que parcerias a França busca no Rio Grande do Sul?
Já existe uma presença econômica aqui, especialmente na agropecuária, com a Timac Agro, com a Kuhn, de máquinas, uma subsidiária na produção de asfalto, a Fayat, no setor da energia com a Alstom e uma variedade de laços com programas de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Havia cinco anos não ocorria visita oficial do embaixador da França ao Rio Grande do Sul. Em encontro com o governador José Ivo Sartori, falamos em dar novo ímpeto a um projeto que tivemos no passado entre o Estado e a região de Pays de Loire, na França, que guarda semelhanças na agropecuária, no vinho, na tecnologia. Temos várias ideias que podemos trabalhar juntos. O Rio Grande do Sul é importante, mas, em razão de mudanças de embaixadores nos últimos anos, houve falta de atenção a este Estado, que merece muito mais presença.
Como a França está lidando com a ameaça terrorista?
Primeiro, quero agradecer ao Estado e a Porto Alegre por terem iluminado o estádio de futebol(Beira-Rio) com as cores da França naquela noite (dos atentados de dezembro do ano passado), porque, para nós, foi muito emocionante sentir essa solidariedade. Esses eventos foram dramáticos, um choque. Os lugares escolhidos (para os ataques) mostram que foi um desafio não só à França, mas a um certo modo de viver. Atacar restaurantes, lugares onde se toca música, é acabar com a vida. Eu estava em Paris algumas semanas atrás. Os franceses, os parisienses, querem mostrar que nada vai afetar nosso modo de viver. E a gente vai a restaurantes, vai a concertos, continuamos indo, porque não vamos dar a eles essa vitória. Por trás dos atentados, há uma tentativa de atacar o modelo francês de integração. Somos um país de imigrantes, um terço dos franceses têm um avô imigrante. Claro que houve casos isolados de reação negativa contra a cultura islâmica, mas, de maneira geral, foi o contrário: mostramos o desejo de manter essa convivência do povo. Estamos em guerra, e essa guerra está no exterior, com a participação da França contra esse grupo, o Daesh (acrônimo em árabe do grupo Estado Islâmico). Não utilizamos o termo Estado Islâmico. Porque não é um Estado e não é islâmico. Não tem nada a ver com a religião muçulmana. Também aumentamos medidas de prevenção. Não é possível estar 100% protegido, mas conseguimos organizar eventos como a COP-21 e a Eurocopa sem problemas de segurança.
Muitos terroristas nasceram na França. Como vê esse fato?
O perfil dessas pessoas é complexo. Há um especialista em explosivos que era bretão (natural da Bretanha, no litoral atlântico da França), sem nenhuma ligação familiar com a cultura muçulmana. É parte dessa loucura, esse domínio psicológico de uma pessoa que, pela internet, consegue influenciar jovens de 18 anos.
Como o governo francês encara a onda migratória?
Deve-se estabelecer diferença entre o migrante que tem direito a asilo, que é perseguido, e a migração de natureza econômica. Nenhum país tem possibilidade de acolher todas as dificuldades do mundo. França e Alemanha têm destacado que a Europa pode acolher pessoas perseguidas, mas precisamos de solidariedade entre os países para repartir o peso de acolhê-las.
Esse medo do terrorismo já se reflete em conservadorismo extremo na França e em outros países. Como vocês estão lidando com o crescimento de grupos políticos radicais?
O que vemos na União Europeia toda, o fato da existência do terrorismo islâmico, da pressão migratória, é um fenômeno que favorece extremos políticos. É um risco que existe na França, já se vê nas eleições locais na Alemanha e nas presidenciais na Áustria. É uma realidade. Mas esses votos, essas expressões de medo, não são parte da solução. A solução está em seguirmos o caminho de nosso modelo democrático, laico, aberto a todas as religiões, mas com a proteção do espaço público, dessa neutralidade do espaço público.
De onde veio a admiração por Erico Verissimo?
Fui estagiário da embaixada em Brasília em 1989 e resolvi, à época, escolher o português como primeira língua para os concursos na Escola Nacional de Administração. Quando voltei à França, tive aulas particulares com um brasileiro. Ele me falou que, para aprender português, não havia outro jeito a não ser ler O Continente, de Erico Verissimo. Quando deixei o Brasil, foi uma maneira de continuar meu laço com o país. Desta vez, quando soube da minha nomeação (como embaixador) para o Brasil, comecei a reler o livro, atrás daquela língua que tinha deixado de lado por quase 25 anos. Nos primeiros dias em Brasília, aos finais de semana, compartilhava meu tempo com a família Cambará, com a tradição gaúcha e a história do Rio Grande do Sul. Tinha vontade de conhecer o Estado. Quando minhas professoras souberam de meu interesse pelo português, me fizeram conhecer as crônicas de Luis Fernando Verissimo, que tem um senso de humor muito impressionante.