Quando atendeu a um telefonema dias atrás, Oraidis Ribeiro Cunha, 56 anos, chegou a se assustar. Era do Departamento de Homicídios de Porto Alegre, um agente que gostaria de tomar o seu depoimento sobre o assassinato de seu filho, o ajudante de pedreiro Anderson Roberto Rodrigues da Rocha, assassinado aos 20 anos. O detalhe é que o rapaz foi morto a tiros em julho de 2010, seis anos atrás.
– Nunca tinham procurado a gente, e aí, seis anos depois me ligam. Quando já não adiantava nada – desabafa a mãe.
E a frase dela não foi à toa. Não fosse a impunidade, é possível que o ajudante de pedreiro sequer tivesse sido morto. Após o crime, o principal suspeito da morte do seu filho, Cristian Zanir dos Santos Nascimento, o Véio, não foi punido. Acabou assassinado em junho de 2014, depois de ter inclusive passado pelo regime semiaberto por roubo de veículo, e de ficar foragido. Mas sem responder por aquela morte.
Autores assassinados
Entre 336 inquéritos de homicídios e tentativas na Capital, parados na Polícia Civil entre 2008 e 2010, três casos – duas tentativas de homicídios antes da morte de Anderson –, todos no início de 2010, incriminavam Véio desde o registro de ocorrência. Ele ficou impune. Assim como pelo menos 50 suspeitos entre os 165 inquéritos já concluídos daquele montante de casos passados, retomados por um mutirão do Departamento de Homicídios de Porto Alegre há dois meses.
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Significa que em cada dez homicídios dessa amostra, três já não podem ter seus autores punidos. Em dez casos, os suspeitos foram indiciados agora. O restante foi encerrado sem apontar autoria. Seja pela impossibilidade de encontrar as vítimas nos casos de tentativas de homicídios, ou pelo medo dessas vítimas reforçado justamente pela impunidade.
– Não há como afirmar que a impunidade alimenta o crime, mas a falta de pessoal na Polícia Civil é um fator preponderante para que os casos não tenham sido solucionados na época – diz o diretor de investigações do Departamento de Homicídios, delegado Gabriel Bicca, que coordena o atual mutirão.
Se a polícia tivesse agido...
Até hoje, Oraidis ainda imagina que o filho vai chegar à sua casa, na Zona Norte de Porto Alegre, para visitá-la com a alegria que ele costumava fazer nos seus últimos meses de vida. Foi quando Anderson alugou uma casinha na Rua Francisco de Medeiros, junto a um pontilhão da Vila Minuano, no Bairro Sarandi, para morar sozinho.
No final da tarde daquele 28 de julho de 2010, o ajudante de pedreiro cumprimentou a vizinhança e deu uma passada no bar de um amigo. Pediu R$ 10 emprestado. E voltou para casa. Pegou uma cadeira e se sentou à beira do pontilhão com a gurizada da vila.
Um carro em alta velocidade cruzou o pontilhão com tiros cruzando o local. Anderson nem teve tempo de reagir. Caiu, sem vida, à beira do arroio. Um rapaz, na época com 16 anos, ficou ferido. Já no registro de ocorrência foi relatado que provavelmente ele fosse o alvo. O atirador, era indicado: Véio, de 17 anos na época.
O relato pouco mudou o rumo da investigação, como já havia acontecido duas vezes desde março. Naquele mês, o mesmo adolescente ferido junto com Anderson já havia sido baleado pelo Véio no Bairro Sarandi.
– Eles haviam se encontrado na Fase meses antes e o Cristian prometeu matar o rival – explica o delegado Gabriel Bicca.
Em maio de 2010, novo ataque a tiros deixou ferido outro jovem de 19 anos. Mais uma vez, Véio foi citado na ocorrência. E não foi punido pela investigação da delegacia de homicídios da época. Os casos tampouco foram encaminhados ao Deca.
Antes dos ataques de 2010, Cristian já havia passado pela Fase por receptação, porte ilegal de arma e roubos de veículos. Em 2012, foi condenado por roubo de veículo e teve a sua pena determinada a cumprir no regime semiaberto. Fugiu. Dois anos depois, foi assassinado com pelo menos quatro tiros na Rua Faria Lobato, Bairro Sarandi.
Medo
Entre os casos de tentativas de homicídios encontrados pelo mutirão, uma das dificuldades dos agentes é justamente driblar o medo das vítimas e conseguir comprovar as autorias de crimes. Foi o caso de um jovem que, para sua proteção, não terá o nome e o local onde aconteceu o crime revelados. Depois de ser internado na Fase por tráfico, ele havia decidido mudar de vida. Mal sabia que, para conseguir sair da quadrilha, só morto.
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E a ordem para executá-lo aconteceu. Arrancado de casa, o jovem foi alvo de diversos disparos. Não morreu, mas acabou em uma cadeira de rodas. Antes disso, ficou meses internado na UTI e, depois de recuperado, sequer foi procurado pela polícia.
Chamado a depor pelo mutirão, não pensou duas vezes:
– Sei quem foi, mas não sou louco de denunciar.
O inquérito precisou ser encaminhado à Justiça sem autoria determinada.
Reforços
Até a criação do Departamento de Homicídios, as duas delegacias ligadas ao Deic que investigavam esse tipo de crime na cidade chegavam à autoria de apenas 10% dos casos. Em 2013, quando o departamento foi criado, o índice saltou para mais de 60%. Ainda assim, casos, como o da morte do próprio Véio, de 2014, seguem sem solução.
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– Nós mantivemos o índice de resolução dos crimes na faixa de quase 70%, mas é inegável que temos um déficit de pessoal em relação ao que se tinha na criação do departamento. Muita gente se aposentou e não há reposição no mesmo ritmo – aponta o diretor do Departamento de Homicídios, delegado Paulo Grillo.
O diferencial do departamento era sempre ter a equipe que investigaria o caso no local do crime. Isso mudou. Atualmente, a cada 24 horas, uma equipe volante encarrega-se do atendimento aos locais de crime em Porto Alegre. Para Paulo Grillo, não houve prejuízo na investigação.
No entanto, os assassinatos na cidade seguem em alta. Há expectativa de receber reforços de policiais, até como estratégia para fazer frente à explosão de homicídios na Capital, somente no próximo ano.
Mutirão multiplicado
A corrida atrás do tempo e da confiabilidade perdida pela Polícia Civil, com um mutirão para solucionar casos de homicídios parados há tanto tempo deve se multiplicar. A ideia da Chefia de Polícia é criar equipes semelhantes na Região Metropolitana. Na Capital, há pretensão de, encerrado o atual trabalho, iniciar novos mutirões que englobem inquéritos a partir de 2011.
O prazo para encerramento do atual trabalho é final de setembro. Até então, oito agentes vindos do Interior reforçam este trabalho.Em 2011, quando o departamento foi criado, as atuais 5ª e 6ª DHPPs eram encarregadas somente de dar vazão aos inquéritos antigos deixados para trás. O trabalho foi encerrado quando as duas delegacias precisaram ir para as ruas, mas deixou um legado importante. Restaram ao atual mutirão pouco mais de 300 inquéritos de 2008 a 2010.
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