O Brasil registra um estupro a cada 11 minutos, mas foi preciso um caso bárbaro de violência para transformar o assunto em pauta nacional. Desde quarta-feira, quando foi divulgado que uma adolescente de 16 anos foi estuprada por mais de 30 homens, uma onda de indignação varreu o país, ganhou destaque na mídia, gerou repercussão internacional e levou o governo a prometer providências.
O crime ocorreu no fim de semana passado, em uma comunidade do bairro Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. A vítima relatou ter sido dopada. Quando despertou, contou 33 abusadores. Foram os próprios agressores os responsáveis pela divulgação do caso: postaram um vídeo em que expunham a jovem.
Na quinta-feira, a adolescente agradeceu no Facebook as mensagens de apoio recebidas:
– Realmente pensei que seria julgada mal. Não dói o útero, e sim a alma.
O caso tornou-se viral e originou uma reação profunda. Mulheres, principalmente, denunciaram a existência de uma "cultura do estupro", termo que usaram para descrever um ambiente de abuso, assédio e conivência onipresentes, que seria a raiz das situações de agressão física. Dados indicam que se trata de mentalidade arraigada.
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Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 58% dos brasileiros acreditam que haveria menos estupros se as mulheres soubessem como se comportar e 59% concordam que existe uma diferença entre "mulher para casar" e "mulher para a cama".Diante da indignação feminina, expressa principalmente na internet – atos estão previstos para a próxima semana em pelo menos três capitais –, muitos homens solidarizaram-se e até mesmo fizeram um mea-culpa – publicando relatos sobre momentos em que eles próprios desempenharam papéis abusivos –, mas também houve os que culpabilizaram a jovem. O vídeo que mostra a adolescente em situação humilhante teve compartilhamentos e comentários vis. "Fizeram um túnel na mina, mais de 30", postou um usuário do Twitter. "Onde o trem passou... Essas mina dão muito mole mesmo", registrou outro.
Diante da repercussão, o presidente interino Michel Temer chamou uma reunião de emergência e anunciou a criação de um grupo especializado na Polícia Federal para investigar crimes de estupro. "É um absurdo que, em pleno século 21, tenhamos de conviver com crimes bárbaros como esse. Tomaremos medidas efetivas para combater a violência contra a mulher", escreveu no Twitter.
Segundo dados do Ministério da Saúde, 15% dos estupros ocorridos no Brasil envolvem dois ou mais agressores. Na sexta-feira, ganhou os holofotes um outro caso de agressão coletiva, ocorrido uma semana atrás no Piauí. Envolve uma adolescente de 17 anos estuprada por pelo menos cinco agressores, quatro deles menores de idade, no município de Bom Jesus. Conforme a polícia, a jovem foi encontrada amarrada em uma obra abandonada. Se o estupro é parte da rotina brasileira, o que tornou o episódio do Rio emblemático, e particularmente chocante, foi a circunstância de envolver três dezenas de perpetradores. Essa foi a tônica das reações nas redes sociais.
– O que chama a atenção é a brutalidade de pensar que mais de 30 homens estupraram a adolescente e nenhum deles, em momento algum, tentou impedir. O estupro está vinculado à cultura machista e misógina, que entende que os homens têm direito de ferir a mulher – reagiu Samira Bueno, cientista social e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Uma parte da explicação estaria na chamada "cultura do estupro". Segundo o psiquiatra forense Rogério Cardoso, há uma "conduta sexual impositiva" masculina:
– Os homens justificam dizendo que a mulher estava com roupa provocante, que estava querendo, que ela gostou, que sorriu. Há todo um arrazoado absurdo, mas que na cabeça dessas pessoas termina contribuindo para que ocorra o estupro. Em uma cultura machista como a nossa, existe uma inabilidade de entender o comportamento feminino. Se a mulher está sorrindo, o homem pensa que ela está querendo. Se ele se encosta nela no trem e ela não revida, não se defende, fica quieta, isso passa a ser entendido como a concordância.
Essa cultura explica a mentalidade que leva homens a cometerem violência sexual, mas não é suficiente para dar conta de um caso envolvendo dezenas deles. O que talvez conduza de uma coisa a outra, segundo Cardoso, seria uma espécie de psicologia de grupo:
– Isoladamente, talvez a maioria desses 30 homens não faria isso. Mas quando um, dois ou um grupo menor assume uma liderança, os outros se sentem incentivados e aderem. Não se trata de desejo sexual, é agressão. O estupro não pode ser considerado desejo sexual, é um ato de humilhar, de possuir, de machucar a mulher.
No Rio, mulheres protestam contra a cultura do estupro
Ocupando o centro do Rio de Janeiro, centenas de mulheres, conforme o jornal O Globo, fizeram um protesto na noite desta sexta-feira. O ato ocorreu nas escadarias da Assembleia Legislativa (Alerj). Além de prestar solidariedade à adolescente vítima de um estupro coletivo, as manifestantes defenderam a legalização do aborto e punições contra quem agride mulheres.
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