É de forte simbolismo a entrada em vigor no Chile, a partir deste ano que se inicia, da lei do ensino universitário gratuito, aprovada em 23 de dezembro. Mais do que um passo na ampla reforma da educação que leva adiante a presidente socialista Michelle Bachelet, a medida é vista como um marco para deixar na poeira da história os anos nos quais os chilenos se viram submetidos à ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
- A verdade é que, desde 1990, desde a redemocratização, a educação tem melhorado. É uma reforma difícil a que está sendo feita. O Chile sempre está no topo da educação latino-americana - comenta o senador Sergio Bitar, que foi ministro da Educação do presidente socialista Ricardo Lagos.
A educação chilena se destaca na América Latina. O Chile é o país da região mais bem colocado no ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A liderança é de Cingapura, na Ásia. O Chile está na 48ª colocação. México é o 54º, Uruguai é o 55º. Brasil é o 60º, à frente de Argentina (62º), Colômbia (67º) e Peru (71º). No Ensino Superior, a Universidade de São Paulo (USP) passou em 2015 a Pontificia Universidad Católica de Chile, que liderava o ranking em 2014. Brasil e Chile, país com menos de 10% da população brasileira, alternam-se. A USP lidera, seguida da Unicamp, mas, em terceiro e quarto, vêm a Pontificia Universidad Católica de Chile e a Universidad de Chile.
- É nítido o bem que a democracia faz à educação. Melhorou a qualidade do ensino e dos professores e também a cobertura. Começa uma importante etapa. Faz parte do sistema democrático o fortalecimento da educação, com qualidade e acesso aos mais pobres - diz Bitar.
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A nova lei foi aprovada em um rápido trâmite no Senado e na Câmara dos Deputados. Prevê o ensino gratuito nas universidades públicas e nas particulares que aderirem ao sistema passando a entidades sem fins lucrativos, com presença estudantil na direção e recebendo incentivos fiscais. É parte da reforma educacional prometida por Bachelet, que pretende reformular o sistema herdado da ditadura de Pinochet, que reduziu a participação do Estado e promoveu o ensino privado.
Em 2014, Bachelet aprovou a Lei de Inclusão, retirando das prefeituras a administração das escolas públicas, no Ensino Fundamental.
Os estudantes chilenos chamam de insuficiente aquela reforma, em nome da qual têm tomado as ruas do país há quatro anos. A mudança na educação superior era o maior desafio.
- Apesar das tentativas por parte da direita de impedir o avanço da gratuidade, ganhamos uma importante batalha - comenta a deputada comunista Camila Vallejo, ex-líder estudantil, lembrando que a medida rompe um modelo de 35 anos, "regido pelas leis do mercado".
Ex-ministro critica reforma por ver dúvidas no financiamento
Ministro da Secretaria-Geral do presidente democrata-cristão Eduardo Frei (1994-1998), o sociólogo José Joaquín Brunner, especialista em educação, faz uma série de questionamentos: quem controla o processo? Qual a concepção de gratuidade? A quem beneficia politicamente? Quem é excluído e quem é incluído? Como se distribuirão as despesas? E a maior delas:
- Como se sustentará?
Brunner enfatiza não haver "cálculo de custos" e põe dúvidas na sustentabilidade da lei.
- O problema maior é o desequilíbrio do financiamento. A gratuidade universal só será viável com renda per capita de patamares nórdicos e captação de recursos tributários que duplique seu atual volume em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) - diz, reclamando "mais transparência" e listando "profundas correções" que julga necessárias, como "melhorar a qualidade e revisar a pertinência dos currículos que são prematuramente especializados com fins profissionalizantes, além de impulsionar a formação de doutores e investir mais e melhor em pesquisa e desenvolvimento".
Na campanha, Bachelet previra quatro reformas para "reduzir a desigualdade e aumentar a participação" social: tributária, eleitoral, trabalhista e educacional. Em 2014, foi implementada a tributária, pela qual se passou a aumentar gradualmente os impostos sobre as grandes empresas, de 20% a 27%, o que teria resultado num incremento de US$ 8,3 bilhões à arrecadação e, com isso, na possibilidade de sustentar a educação gratuita. Ao atingir 178.104 universitários, 27,5% dos alunos mais carentes estarão contemplados já em 2016 nas 25 universidades que pertencem ao Conselho de Reitores - 16 públicas e nove privadas.
As principais críticas ao atual sistema chileno, no qual nem mesmo as universidades públicas são gratuitas, é que provoca desigualdade, os níveis de endividamento das famílias são muito altos, a qualidade não é garantida e o retorno para o mercado de trabalho fica aquém do investimento feito. O governo de Pinochet obrigara todas as universidades a se autofinanciar. Metade dos trabalhadores chilenos recebe salários inferiores a US$ 500 mensais (R$ 2 mil), e os custos dos estudos são definidos em algo como US$ 3,4 mil (R$ 13,6 mil) anuais.
O alcance
Em 2016, a gratuidade irá beneficiar estimados 178.104 estudantes universitários chilenos menos favorecidos, mas a intenção do governo Bachelet é atingir todos os alunos do Ensino Superior até 2020.
Esse número corresponde a 27,5% de todos os universitários do país. O processo é gradual, e a intenção é concluí-lo em 2020, com a educação superior gratuita universal, segundo as metas assumidas pelo atual Executivo. Quando o mandato de Bachelet terminar, em março de 2018, 70% dos alunos mais carentes poderão estudar sem pagar.
A medida auxilia estudantes matriculados em qualquer uma das 25 universidades que pertencem ao Conselho de Reitores (CRUCH), que reúne 16 instituições públicas e 9 privadas.
Embora a lei não inclua a gratuidade para instituições de ensino técnico, o governo financiará alunos de 14 escolas técnicas por meio de bolsas disponibilizadas pelo programa Milênio.
Estudantes nas ruas
A reforma promovida pela presidente Michelle Bachelet atende aos apelos de estudantes que vinham protestando havia quatro anos nas ruas do Chile. Leia, a seguir, motivações para os protestos.
O modelo do Ensino Superior chileno tem baixo nível de financiamento público e até experimentou crescimento na taxa de inserção na década de 1990. Mas há dificuldades de acesso a bolsas pelas classes menos favorecidas e o excessivo desequilíbrio na distribuição de recursos entre as universidades.
A educação superior chilena é cara. Sobrecarrega o orçamento das famílias. Por isso, o tema interessa a todos. Apesar de as bandeiras das manifestações serem a recuperação da educação pública e o fim do lucro no Ensino Superior, os universitários e secundaristas que foram às ruas tiveram o apoio de sindicatos.
Há desequilíbrio entre gastos públicos e privados. O Estado contribui para a educação de nível superior com apenas um terço do que gastam os estudantes e suas famílias. Os estudantes devem pagar taxa mensal que reflita o custo do curso, incluindo universidades públicas.
A partir da década de 1980, a ditadura militar criou mecanismos para o nascimento de novas universidades privadas com financiamento próprio. As instituições públicas foram descentralizadas. Um novo sistema transferiu grande parte dos custos para os estudantes.
Também no início da década de 1980, sob Pinochet, o Chile foi o primeiro país da América Latina a introduzir a cobrança de mensalidades nas universidades públicas. Ainda é a nação latino-americana que cobra taxas anuais mais altas na graduação, acima de US$ 3 mil (R$ 12 mil).
Conforme o estudo La Educación Superior en Chile, publicado em 2009 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Banco Mundial, entre 1980 e 1990, descontando a inflação, o investimento público para educação superior sofreu queda de 41%.
A reforma de 1981 concentrou a aplicação de recursos nas universidades públicas e nas instituições privadas subvencionadas pelo governo. Houve avanços nos últimos anos na oferta de recursos para bolsas, mas apenas 13,8% dos alunos matriculados no Ensino Superior têm acesso ao benefício.