O psicólogo Luismar Model, 27 anos, e a segurança Doralina Machado Peres, 57, seguiram caminhos completamente diferentes depois do dia 27 de janeiro de 2013. Mas, até a madrugada da maior tragédia gaúcha, os dois tinham uma rotina parecida aos finais de semana. De quinta a sábado, eram colegas de trabalho na boate Kiss. Model atendia no bar da casa noturna e Doralina prestava serviço como segurança no local. Ambos entraram na Justiça do Trabalho com pedidos de indenização por danos morais. Model ainda requereu os valores referentes à rescisão contratual. Até hoje, passados dois anos e meio do incêndio, nenhum deles recebeu os valores.
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E os dois não são os únicos. Desde o dia da tragédia, 40 ações foram movidas na Justiça do Trabalho em Santa Maria. Além dos sobreviventes que eram empregados no estabelecimento, o número inclui processos de familiares de pessoas que trabalhavam na danceteria e que morreram na tragédia. É o caso de Patrícia Carvalho, 38 anos, viúva de João Alouísio Treulieb, gerente do bar da boate.
Após o incêndio, Model ficou hospitalizado por quatro dias. Depois, seguiu com tratamento pneumológico no Hospital Universitário (Husm) e, até hoje, sente os efeitos da fumaça tóxica que aspirou naquela madrugada. Atualmente, ele é servidor da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) no Presídio Estadual de Agudo. Mas conta que, à época, era estudante e contava com o dinheiro ganho na boate para pagar a formatura.
- Hoje, tenho meu trabalho, meu salário. Mas, na época, logo após o incêndio, todos nós contávamos com aquele dinheiro que recebíamos semanalmente - lembra o psicólogo.
Doralina ficou internada por um mês em Porto Alegre. Tem marcas de queimaduras pelo corpo e sofre com diferentes problemas respiratórios. Ficou cerca de um ano sem poder trabalhar por restrição de movimento em uma perna e precisou contar com a ajuda de amigos e parentes. Mesmo tendo mudado de atividades - depois da tragédia, passou a atuar como diarista e cuidadora de pacientes em hospitais e em casa - têm dificuldades para desempenhar as funções.
- Os médicos dizem que minha situação fica pior por causa dos produtos de limpeza nas faxinas e do risco de bactérias nos hospitais. Mas eu preciso trabalhar. Então, desobedeço - lamenta a sobrevivente.
Quando perdeu o marido no incêndio, Patrícia estava grávida de sete meses. Há uma semana, a pequena Joana brincava feliz no Parque Itaimbé com a mãe e o "dindo" Model. Patrícia ingressou na Justiça do Trabalho para obter os valores da rescisão do marido e também com ação de indenização por dano moral.
- É para a minha filha que busco esses valores na Justiça - disse a mãe.
Além das 40 ações contra a Santo Entretanimento, que é a razão social da Kiss, existem 9 ações na Justiça do Trabalho movidas por empregados da empresa Everton Druzião, a Sniper, que prestava serviço de segurança na boate. É o caso de Doralina, que moveu ação contra a Kiss e contra a Sniper.
"Não há como dimensionar a dor", diz juíza
Das 40 ações movidas na Justiça do Trabalho de Santa Maria, quatro foram arquivadas - uma porque o juiz julgou improcedente, e três porque o reclamante não compareceu à Justiça quando chamado. Atualmente, tramitam nas duas Varas do Trabalho 36 processos. Os pedidos se referem a verbas rescisórias não pagas pelo empregador ao funcionário (aviso prévio, 13º salário, etc), a reconhecimentos de vínculos de emprego (alguns não tinham carteira assinada e foi preciso comprovar o vínculo empregatício), e, ainda, a indenizações por danos morais.
Para calcular o valor das rescisões, são considerados tempo de serviço e atividade, entre outras variáveis. Os vínculos são comprovados por meio de fotos e testemunhos de colegas, por exemplo. Nesses dois casos, a matemática para chegar ao valor a ser pago é simples.
Mas, quando o assunto são os danos morais, mesmo que a constatação seja feita por meio da apresentação de laudos médicos e de perícias, a avaliação do quanto aquele dano se reverte em indenização é mais complexa. No caso dos sobreviventes, o juiz costuma considerar se houve perda da capacidade laboral ou não do trabalhador, se ele auxiliava na renda familiar e o trauma em função de possíveis sequelas. Se houve morte, o juiz se baseia em casos análogos e considera, entre outros fatores, o grau de parentesco com a vítima.
- O trauma pela morte do parente ou do familiar não tem como mensurar. Não há como dimensionar a dor. Avaliamos caso a caso e arbitramos com base em jurisprudência (o que, normalmente, costuma ser decidido em casos semelhantes aos que estão sendo avaliados) - explica a juíza Elizabeth Bacin Hermes da 1 e 2 Varas do Trabalho de Santa Maria.
Dos 36 processos ativos, 27 já tiveram decisão favorável aos reclamantes, ou por sentença ou por acordo. Os outros nove não chegaram a esta fase final.
Temor é não receber indenizações
Entre os ex-funcionários que sobreviveram ao incêndio na Kiss e os parentes das vítimas que morreram na tragédia ronda uma mesma dúvida: não saber se irão conseguir receber os valores devidos. A incerteza tem dois motivos. Um é que a maioria das ações foi movida contra a Santo Entretenimento Ltda, a Kiss. E, segundo informações extraoficiais, não há dinheiro na conta da empresa. Mas, segundo a Justiça do Trabalho, esse não é um impeditivo, já que as ações são redirecionadas para as pessoas físicas, no caso, os sócios de fato da casa noturna (não apenas contra aqueles cujos nomes constam no contrato).
O outro motivo é que os valores para pagamento das ações vêm todos de uma mesma fonte: o bloqueio de bens e das contas dos sócios da boate pedido pela Defensoria Pública do Estado e determinado pela Justiça Estadual logo após o incêndio. Esse processo tramita sob segredo de Justiça na 1ª Vara da Fazenda Pública da Justiça Estadual. A questão é que não se sabe o quanto resta dele.
- Todos os processos da Kiss estão em andamento. Estamos dando toda a prioridade para resolvê-los. Não sei que sucesso vamos ter com valores, em função do número (elevado) de vítimas - disse a juíza Elizabeth Bacin Hermes da 1ª e 2ª Varas do Trabalho de Santa Maria.
Apenas os advogados das pessoas que ingressaram com as ações indenizatórias na Justiça têm acesso ao processo onde constam os valores bloqueados pela Justiça e o quanto do total já foi utilizado.