A corrida de táxi da jovem Aline*, 22 anos, só terminou quando ela decidiu abrir a porta e se jogar do veículo, em movimento, na frente da própria casa. Assediada e ameaçada de morte pelo motorista, ela recorreu ao desespero para evitar um estupro e está com síndrome do pânico pelo episódio, ocorrido em maio na zona norte de Porto Alegre. Aline procurou a Delegacia da Mulher nessa semana para registrar ocorrência, mas desistiu por medo de represálias. Além dela, pelo menos outra jovem (veja relato no vídeo abaixo) foi à polícia nos últimos dias para reclamar de assédio, dessa vez no Morro Santa Tereza.
As denúncias surgem duas semanas após a prisão do taxista Luiz Fernando Miranda, suspeito de estuprar uma garota de 16 anos em dezembro de 2014 no bairro Bom Jesus, zona leste da Capital. A Polícia Civil acredita que o número de casos não reflete a realidade e encoraja as vítimas a procurarem a Delegacia da Mulher, que vem monitorando as ocorrências e investigando a conduta de taxistas.
- Ele (motorista) começou a dar muitas voltas e eu disse que não era o caminho da minha casa. A corrida estava ficando próxima dos R$ 100 e eu não tinha como pagar. Ele colocou a mão na minha perna e falou que eu poderia pagar de outra forma. Nesse momento, ele tomou o itinerário contrário à minha residência. Eu disse que, se me deixasse em casa, daria tudo o que tinha para pagar. Ele retornou e afirmou que se eu não desse, não veria minha casa novamente, e acelerava e freava. Abri a porta e me joguei para fora do carro - contou Aline a Rosane de Oliveira, titular da Delegacia da Mulher.
A jovem chamou a corrida pelo EasyTaxi e levou prefixo, placa, nome e fotografia do taxista para a polícia, que em poucos minutos tinha todo o histórico do suspeito em mãos. Porém, a desistência de registrar a queixa criminal impede que ele seja indiciado por tentativa de estupro. Situações como essa motivaram a ONG Themis, criada por um grupo de advogadas e cientistas sociais feministas, a procurar a Secretaria da Segurança Pública para cobrar investigações.
- Estamos ouvindo falar disso há um tempo e queremos respostas. Há duas responsabilidades em questão: do Estado, de investigar e punir, e dos indivíduos e empresas que empregam. Quem são os criminosos dirigindo? Os permissionários escondem, cobram, monitoram ou investigam eles? - aponta Denise Dora, integrante do conselho consultivo da ONG.
A EPTC disponibiliza o telefone 118 para denúncias. Não é preciso se identificar. Jà a Polícia Civil orienta as vítimas a procurarem a Delegacia da Mulher, que fica no Palácio da Polícia. O telefone é (51) 3288-2172.
"Feche os olhos para ter uma surpresa"
O outro caso apurado por Zero Hora ocorreu no final de maio, quando Fernanda* (veja relato no vídeo acima) optou por um táxi para ir até o Beira-Rio - a menina de 16 anos sempre achou que fosse uma opção de transporte mais segura. Mas, depois daquela viagem, descarta a possibilidade de solicitar o serviço novamente. Contra a vontade da adolescente, o profissional fez uma rota alternativa, levando-o a para "ver a vista" do Morro Santa Tereza.
- Foi horrível - define.
Logo quando entrou no veículo, no bairro Petrópolis, e foi chamada pelo diminuitivo do seu nome - sua identidade estava disponível ao profissional por meio do aplicativo -, a jovem estranhou a intimidade. Ouviu a história de vida do homem e respondeu questões pessoais. Além disso, foi sondada a respeito do local onde estuda e da sua idade. Ela começou a sentir medo quando, próximo ao estádio Olímpico, reparou que ia por uma rota diferente: estava na Vila Cruzeiro.
Taxista que atropelou e matou ciclista seguia trabalhando no Salgado Filho
O taxista questionou-lhe se conhecia a vista do Morro Santa Teresa, e Fernanda respondeu que não queria ir ao local, reiterando que uma amiga a aguardava. Mas a recusa não foi suficiente para convencer o taxista a desistir do "passeio":
- Mais tarde, perguntei de novo e ele disse que estávamos no Morro Santa Teresa. Me mandou fechar os olhos para ter uma surpresa. Desligou o carro e insistiu que eu tirasse fotos da vista. Eu estava com medo, mas não queria que ele reparasse. Então, concordou em me levar ao Beira-Rio - conta.
O relato da jovem deixou sua mãe, comerciária de 59 anos, indignada. Elas fizeram um boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher e registraram reclamação junto à EPTC. A mãe defende que esse tipo de abordagem precisa ser denunciado:
- Isso acontece muito e as pessoas não falam, talvez por vergonha. Ela tem só 16 anos, felizmente não aconteceu o pior.
"Animais, predadores"
A delegada Rosane de Oliveira afirma que nem mesmo o controle proporcionado pelos aplicativos inibe uma conduta que, de acordo com ela, é "prática comum" de maus profissionais:
- Da forma como aconteceram os delitos, achamos que é prática comum, pois eles falaram e agiram com tanta desenvoltura e naturalidade que aparenta ser rotina. Por que as autoridades públicas não têm conhecimento disso? Onde estão as demais vítimas? - questiona Rosane de Oliveira.
As prejudicadas não são apenas as passageiras. Há relatos entre os próprios profissionais, como o de uma taxista que trabalha no Aeroporto Salgado Filho e diz ser hostilizada por alguns colegas simplesmente por ser mulher. O sindicato da categoria está em alerta para as denúncias e entende que a falta de rigor na formação dos condutores, aliada à facilidade para obter a licença - mesmo com histórico de crimes dos pretendentes -, é um convite para "predadores". Reportagem de Zero Hora publicada em março revelou, por exemplo, que os cursos ensinam alunos a fazer negócios irregulares e instrutores contam nas aulas, empolgados, experiências de agressividade no trânsito.
- Esses elementos são animais, predadores. Usam a credibilidade da maioria esmagadora da categoria, nosso maior patrimônio, para cometer crimes. Desde 2004 estamos propondo à Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) a exigência de histórico laboral para a liberação da licença. É preciso que o permissionário saiba quem está empregando e se responsabilize. Mais de 90% dos errados seriam eliminados assim - defende Luiz Nozari, diretor do Sintáxi.
O presidente da EPTC, Vanderlei Cappellari, informa que o órgão recebe cerca de 80 reclamações por dia contra taxistas, nenhuma envolvendo suspeitas de assédio sexual. Ele ressalta que a lei não permite que seja divulgado publicamente a história criminal de uma pessoa, por isso não foi adotada a exigência de "ficha limpa" para liberação da licença. Cappellari garante que um decreto de lei, com previsão de ser publicado na próxima semana, vai endurecer as regras para formação de taxistas. Uma parceria entre EPTC e Polícia Civil é outra opção estudada para barrar os criminosos ao volante:
- Vamos alterar significativamente a forma de avaliação para conceder o diploma de taxista. A formação passa de 40 para 50 horas, com exigência de 100% de frequência. Parte do curso será dentro da EPTC, com orientação da BM. É impressionante o que vem ocorrendo, a categoria está revoltada. Muitos permissionários têm nos procurado com a intenção de fazer um movimento para limpar os maus profissionais.
* Os nomes das vítimas citados nesta reportagem são fictícios