O Oriente Médio tornou-se palco de um "novo Grande Jogo" entre as potências ocidentais e seus aliados locais, e o resultado tem sido catastrófico para a região. Essa é a avaliação de Gilbert Achcar, professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres e autor de oito livros sobre a região. A seguir, uma síntese da entrevista de Achcar a Zero Hora:
Zero Hora - O senhor analisou criticamente a hipótese defendida por muitos de que a Irmandade Muçulmana, então recém-eleita para a presidência do Egito e apoiada pela Turquia e pelo Catar, pudesse se constituir num fator de modernização do Oriente Médio. Hoje, a Irmandade voltou a ser proscrita na maior parte da região. O que houve?
Gilbert Achcar - Em meu mais recente livro (The People Want, de 2012, inédito no Brasil), previ que Mohammed Mursi (presidente do Egito deposto em 2013) e a Irmandade fracassariam. A Irmandade não tem respostas para a crise econômica. Eles aprovaram as mesmas políticas econômicas dos regimes anteriores, que criaram a crise. Um de seus líderes egípcios disse que a política econômica de Hosni Mubarak (ex-ditador, deposto em 2011) era boa e que o único problema era a corrupção. Isso estava errado, porque Mubarak seguia um modelo neoliberal que, ao ser aplicado a países como os do atual mundo árabe, está fadado ao fracasso.
ZH - O historiador britânico Perry Anderson comparou a Primavera Árabe a grandes processos revolucionários, como a Primavera dos Povos europeia (1848 - 1852) e os levantes no Leste Europeu no final dos anos 1980. Essa comparação é válida?
Achcar - Comparações podem ser úteis, não para estabelecer analogias, mas para apontar diferenças. Creio que qualquer comparação com o levante no Leste Europeu no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 - e que levou à queda do sistema dos assim chamados Estados comunistas, incluindo a União Soviética - expõe grandes diferenças que ajudam a entender o que está ocorrendo no mundo árabe. A mais importante é que não havia, no caso do Leste Europeu, classes em luta. Foram as primeiras revoluções, se você quiser, na história contra um sistema que não se baseava em uma classe dominante. Com exceção de uma minoria, os burocratas não resistiram ao movimento, à mudança. Foi um processo que levou a uma mudança social e econômica radical, mas foi extremamente pacífica se comparada com outras revoluções na história, com poucas vítimas, feita de forma muito rápida e fácil. No caso dos países árabes, o que você tem é mais próximo das monarquias absolutistas da Europa entre os séculos 16 e 18. Esses "Estados patrimoniais", como dizemos no jargão especializado, não são Estados que você pode derrubar de forma pacífica e fácil. Se você olhar para as revoluções Francesa e Inglesa, apenas para tomar dois exemplos, verá que foram processos longos e difíceis, estendendo-se por muitos anos e décadas, com muitos altos e baixos, revoluções e contra-revoluções, antes de que se alcançasse uma nova estabilidade. Assim, a situação árabe é mais próxima dessas revoluções contra o absolutismo do que o que houve no Leste Europeu.
ZH - O atual regime egípcio é às vezes apontado como uma espécie de continuidade com o nacionalismo árabe dos anos 1950 e 1960, surgido em torno da figura do líder Gamal Abdel Nasser. Isso faz sentido para o senhor?
Achcar - Aqueles que fazem analogias entre Nasser e Al-Sisi ou são verdadeiramente ignorantes das realidades históricas sem sabê-lo ou estão tentando enganar o público. Quando os simpatizantes de Al-Sisi no Egito comparam Al-Sisi a Nasser, estão enganando a si mesmos, enganando o público ou ambos. Mas a verdade é que existe uma tremenda diferença. O regime de Nasser foi criado por jovens oficiais que se rebelaram contra a cúpula de seu exército, derrubaram a monarquia e criaram uma república. Radicalizaram-se em razão de suas aspirações nacionalistas e populistas, nacionalizaram os maiores setores produtivos no país. Implementaram uma reforma agrária, lançaram um enfrentamento antiimperialista com as grandes potências e com Israel. Pertencem às formas de nacionalismo e populismo de esquerda que caracterizaram os anos 1950, 1960 e 1960. Era parte de uma onda na qual os mais radicais abraçaram o marxismo. Os nasseristas não chegaram a isso, mas foram muito longe nessa direção. Isso não tem absolutamente nada a ver com Al-Sisi, que é o chefe das forças armadas num regime intimamente ligado aos Estados Unidos, sob um modelo econômico neoliberal encabeçado por uma classe capitalista da qual é o representante, o fundador, o herói. Ele emergiu como salvador do capitalismo clientelista no Egito e do controle do Estado por um exército que se tornou uma força econômica, diferentemente dos tempos de Nasser. Al-Sisi é expressão de uma fase contra-revolucionária no Egito. Se observarmos o que se iniciou em janeiro de 2011 como um processo revolucionário - e, é claro, o início de um processo revolucionário é sempre uma revolução -, estamos agora em uma fase de contra-revolução que não tem nada a ver com Nasser e o nasserismo. Mas isso não significa o fim do processo, porque suas raízes permanecem no Egito e na região: a paralisia econômica e o massivo desemprego que dela resulta. Por isso, Al-Sisi não conseguiu estabilizar o país em longo prazo. O Egito assistirá a novas explosões e futuros levantes antes que possam ocorrer mudanças radicais nas condições sociopolíticas que possam abrir uma nova era histórica de progresso e desenvolvimento econômico.
ZH - O que é o Estado Islâmico?
Achcar - O que tem sido chamado de Estado Islâmico é apenas a continuação da Al-Qaeda no Iraque. O governo Bush (George W. Bush, presidente americano de 2000 a 2009) invadiu o Iraque sob o pretexto de erradicar a Al-Qaeda e chegou a mentir ao público americano que o regime de Saddam Hussein estaria apoiando a rede terrorista - o que era mentira pura, ou seja, qualquer um que conheça as realidades da região sabia que se tratava de invenção. Então, invadiram o Iraque em nome da luta contra a Al-Qaeda. O resultou, como muitos previram - eu, entre outros - foi a criação de condições para a emergência da Al-Qaeda no Iraque, que chegou a controlar partes importantes do país até 2006. E só depois de os Estados Unidos mudarem de estratégia em relação às tribos sunitas foi possível derrotar a Al-Qaeda no Iraque. Foi esse grupo que se renomeou como Estado Islâmico no Iraque e se tornou marginalizado. Foram derrotados, mas permaneceram na região. Quando a guerra civil estourou na Síria, surgiram condições caóticas. Essas pessoas, que a essa altura incluíam remanescentes do regime de Saddam, foram para a Síria e mudaram seu nome para Estado Islâmico do Iraque e da Síria. Eles estabeleceram uma base na Síria e, no verão passado, depois de se preparar, lançaram uma ofensiva no Iraque outra vez e conquistaram apoio das tribos sunitas alienadas pelo governo de Al-Maliki (Nuri al-Maliki, ex-primeiro-ministro do Iraque), que era muito sectário. Ele afastou os sunitas, e então a Al-Qaeda-Estado Islâmico, como se autoproclamaram, conseguiram ganhar de novo o apoio das tribos. Antigos aliados de Saddam se juntaram a eles, e assim conseguiram capturar grandes regiões do Iraque. Nesse momento, eles removeram "Iraque e Síria" do nome e se tornaram apenas Estado Islâmico. Até mesmo seu líder, Abubakr al-Baghdadi, proclamou-se o novo califa. Assim, vemos que tudo isso é, acima de tudo, resultado da ocupação americana do Iraque. É resultado das políticas ocidentais. A própria Al-Qaeda e Osama bin Laden são produto da mesma ideologia wahhabita, que é a doutrina oficial do reino saudita. A mais reacionária e fundamentalista interpretação do Islã é a da Arábia Saudita, e esse reino é o melhor amigo dos Estados Unidos e de outros países ocidentais. Veja a grande contradição - eles estiveram brincando com fogo por muitas décadas e agora estão colhendo o resultado das políticas que adotaram por um período muito longo. Assim, o Estado Islâmico é uma expressão do extremo ódio e ressentimento criados, primeiro, pela brutalidade da ocupação americana do Iraque e, em segundo lugar, pela brutalidade do regime síria na guerra contra seu próprio povo. Tudo isso combinou-se em um grande ressentimento entre parte da população, e foi assim que o Estado Islâmico surgiu. Não penso que, em longo prazo, eles possam manter controle de territórios. Eles estão tratando de fazer isso agora porque há condições caóticas, especialmente na Síria e também no Iraque. Mas, à parte essas condições, se houver alguma mudança na situação, eles não irão durar, porque suas políticas e concepções de poder são tão loucas que dificilmente poderão se manter por muito tempo. São um produto da situação caótica atual. Eles cresceram muito rapidamente. Penso que podem também desaparecer rapidamente. Quando digo "desaparecer", isso não significa que vão sumir completamente, mas perder o território que controlam tão rapidamente como conseguiram conquistá-lo.
ZH - Como o senhor vê as negociações entre o Irã e as potências ocidentais em torno da questão nuclear?
Achcar - A nova mensagem é clara: os Estados Unidos não querem reconhecer a soberania do Estado iraniano e pretendem impor a ele graus de controle que não impõem a outros países em relação a capacidade nuclear, para não mencionar o fato de que fecham os olhos para a condição de Israel como um Estado nuclear fortemente armado. O cerne dessa questão é que Israel e os EUA temem um Irã nuclearizado e se assustam com a possibilidade de que isso dê margem a um armamento similar na região, o que seria prejudicial aos interesses americanos. Os sauditas, aliados próximos dos EUA, estão extremamente preocupados com essa perspectiva. Assim, você tem Israel, a Arábia Saudita e os Estados Unidos interessados em impor um controle muito estrito sobre a indústria nuclear no Irã. As aspirações nucleares são atribuídas ao nacionalismo iraniano, e, de fato, o regime do Irã é muito nacionalista desde o início, é a expressão religiosa de um tipo muito nacionalista de política. E isso se tornou um cabo de guerra entre o Ocidente - com apoio de Israel e dos sauditas - e o regime iraniano. A pressão sobre o regime iraniano é muito forte, porque é de natureza econômica: há sanções que fazem muito mal à economia do Irã, acrescidas agora da guerra dos preços do petróleo movida pelos sauditas. Os sauditas, em aliança com os Estados Unidos, estão agindo para derrubar os preços do petróleo, que já ultrapassaram os US$ 100 por barril, e agora caíram a menos da metade desse valor. Isso estabelece uma forte pressão sobre a economia de três países que têm sido os maiores opositores dos EUA: Irã, Rússia e Venezuela. São três produtores de petróleo, todos exportadores, muito dependentes da exportação petrolífera e de gás. Isso está se tornando um Grande Jogo, se você quiser, na região, que tem muitas dimensões, porque há guerra na Síria, há a situação no Iraque, e em torno de tudo isso os Estados Unidos, o Irã, a Rússia e os Estados árabes estão jogando seu jogo numa região que foi tragicamente penalizada. A Síria está próxima dos 300 mil mortos, um número incontável de pessoas foi deslocada e ferida pelo resto da vida, e há milhões de outros refugiados e exilados. Já é a pior tragédia deste novo século, e uma das piores que se pode encontrar na história. Estamos presenciando uma grande calamidade.