O Ministério Público argentino, oficialmente, deu razão ontem ao procurador Alberto Nisman, que morreu de forma misteriosa às vésperas de se pronunciar no Congresso acusando a presidente Cristina Kirchner de encobrir a participação iraniana no atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia). O procurador Gerardo Pollicita denunciou Cristina, o chanceler Héctor Timerman, o líder sindical Luis D'Elía e o deputado Andrés Larroque.
Pollicita, além de dar seguimento à iniciativa de Nisman e pedir a abertura de processo judicial, quer mais investigações sobre o suposto encobrimento. A acusação feita por Nisman vinha acompanhada de escutas telefônica onde ficariam comprovadas as relações de pessoas ligadas ao Executivo com o Irã.
O governo reagiu voltando a desqualificar as provas. O secretário da presidência, Aníbal Fernández, advertiu Pollicita que imputar Cristina significa "uma clara manobra de desestabilização democrática". E ainda definiu o documento apresentado pelos procuradores como "sem valor jurídico nem importância".
Em nota, o governo procurou isentar a presidente de responsabilidades. "Não há prova alguma, muito menos de caráter 'indiciário', que demonstre a existência de condutas atribuíveis à presidente da nação ou a funcionários do governo nacional que possam se enquadrar em 'ilícitos penais'", diz o comunicado.
Na denúncia, Pollicita diz que os acusados tomaram a "decisão deliberada de encobrir" imputados iranianos no caso Amia, atentado que deixou 85 mortos em 1994 e que foi precedido de outro ataque, dois anos antes, à embaixada de Israel, que deixara 29 mortos _ no total, são 114 vítimas em dois atentados-. Sustenta que Cristina negociou um acordo com o Irã, aceitando levantar as acusações contra Teerã em troca de petróleo mais barato e da venda de grãos. Para tanto, teria sido alinhavada uma pista falsa, com participantes locais no atentado.
A decisão do novo procurador destacado para o caso oficializa seu convencimento de que a exposição de Nisman foi feita com base em informações e provas sólidas _ por isso, acredita que a presidente e os outros suspeitos devem ser investigados. Para tanto, ele pedirá o recolhimento de documentos em órgãos públicos.
O analista político Joaquín Morales Solá vê a presidente isolada internamente e, no cenário internacional, aliada apenas China, Rússia e Irã - com o Brasil, as relações estariam em um momento de frieza.
- Não são amigos para você apresentar a nenhuma sociedade democrática do mundo - ironiza Solá.
Justiça fará uma autópsia psicológica
Também ficou definido que a Justiça argentina realizará autópsia psicológica de Nisman a pedido de sua família, que duvida da hipótese de suicídio. Nisman morreu com um tiro na têmpora direita. A ideia é mostrar que, além de todos os diversos indícios contrários à possibilidade de suicídio simples, há ainda o aspecto subjetivo: Nisman não tinha perfil suicida e vivia momento de auge profissional, o que tornaria essa possibilidade ainda mais remota.
O estudo foi solicitado pela ex-mulher de Nisman, a juíza Sandra Arroyo Salgado, com quem ele teve as suas duas filhas. O objetivo da análise psiquiátrica, conforme peritos forenses, é reconstruir o estado mental da vítima e traçar seu perfil emocional por meio de entrevistas com pessoas do seu círculo íntimo e profissional, assim como com os médicos que o atenderam nos últimos tempos.
Apesar de ter sido encontrado sozinho no apartamento, em condições que levariam à ideia de suicídio, Nisman não tinha pólvora nas mãos, e a porta de serviço da sua casa estava destrancada. Apesar da tradição judaica de enterrar suicidas em área separada, Nisman, que era judeu, não teve esse tratamento diferenciado.
O governo, em um primeiro momento, reagiu dizendo que se tratava de um suicídio simples e nem sequer enviou condolências à família. Depois, mediante evidências, adotou a tese do homicídio ou do suicídio induzido, mas sustentando que isso teria sido feito por adversários da presidente que tentariam incriminá-la.
A teoria da conspiração, porém, já improvável em si, esbarra em outras evidências: para culpar Cristina, não teria sido forjado um suicídio; os contatos de Nisman com a inteligência americana são naturais, por se tratar de terrorismo internacional; e a presidente está em fim de mandato sem a prerrogativa legal da segunda reeleição e sem um candidato competitivo do seu entorno mais próximo.
O historiador Carlos Malamud vê uma situação que já era contrária ao governo e que agora tende a se agravar.
- Para começar, depois de três eleições seguidas, não há candidato que seja membro da família Kirchner - diz ele, Quem despontaria? O governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, político sempre visto com desconfiança pelo kirchnerismo.