Terra de rivalidades e contradições, o Rio Grande do Sul jamais reelegeu um governador após a redemocratização - mas sustenta cada um deles com vencimentos reservados à elite do funcionalismo. Graças a uma lei que tem sido questionada na Justiça, todo mês o combalido Tesouro estadual deposita nas contas de ex-mandatários e viúvas
R$ 30.471,11. É uma conta que, corrigida pelo Índice Geral de Preços (IGP-DI), chega a um acumulado de R$ 54,6 milhões desde o início do Plano Real, em 1995.
A soma equivale ao orçamento para construir 45 creches, capazes de atender 5,4 mil crianças, ou cobrir todas as despesas de um hospital como o da Restinga por dois anos, ou ainda erguer três penitenciárias como a de Venâncio Aires, reduzindo em um quarto o déficit carcerário.
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Em 2015, a fatura fica mais cara: aos seis ex-mandatários e as quatro viúvas que gozam o benefício se juntarão Tarso Genro e, possivelmente, o ex-senador Pedro Simon, que até hoje abdicava da aposentadoria. Assim, o Estado poderá chegar a dezembro com gasto anual de R$ 4,386 milhões em pensões, quantia que manteria 200 soldados da BM em atividade.
- Uma lei que prevê que alguém trabalhe por quatro anos, não contribua para um fundo e tenha pensão vitalícia transferível à viúva é privilégio político - avalia o diretor da ONG Transparência Brasil, Claudio Abramo.
Uma viúva com duas pensões
Criada em 1979, a lei estadual que permitiu os subsídios trazia a justificativa de garantir uma vida digna a ex-governadores e amparar suas viúvas. Tomou-se como referência o teto da magistratura - salário de desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado. Esse valor supera o salário do governador em atividade, R$ 25.322.
Inicialmente elaborada com ares franciscanos, hoje essa aposentadoria reforça contas bem guarnecidas. Alceu Collares (1991-1994) soma ao benefício pelo menos três fontes de renda: salário como conselheiro da Itaipu Binacional, estimado em R$ 19 mil, aposentadoria como funcionário dos Correios e fundo de previdência como deputado federal.
Defensores da pensão argumentam que, ao passar quatro anos no poder, governadores perderiam contato com a iniciativa privada e poderiam ter dificuldade para se sustentar. Não é o que costuma ocorrer no RS.
Após liderar o Piratini de 1995 a 1998, Antônio Britto galgou uma próspera carreira na iniciativa privada: presidiu uma grande empresa calçadista, foi membro do conselho de uma empresa de telecomunicação e hoje dirige a principal organização de indústrias farmacêuticas no Brasil, a Interfarma.
Parte dos advogados e juristas apoia o benefício como forma de cobrir gastos com segurança, deslocamento e participação em eventos. Especialista em direito previdenciário, Daisson Portanova sustenta que a pensão é uma honraria destinada a quem teve papel relevante na política do Estado. Como não pode ser comparada à aposentadoria, não há infração no pagamento, analisa.
- A pensão é legítima. O que deveria haver é um controle maior para evitar pagamentos desnecessários - condiciona.
Um caso peculiar envolve Marília Guilhermina Pinheiro, que foi companheira de Leonel Brizola por 11 anos. Além de receber pensão no RS, ela obtém benefício do Estado do Rio de Janeiro, também governado por Brizola. A remuneração total passa de R$ 52 mil mensais.
Tentativas de barrar benefício não avançam na Assembleia
Aprovada em 1979 durante o governo José Augusto Amaral de Souza, a lei da pensão vitalícia esticou ao Rio Grande do Sul um benefício criado 10 anos antes pelos militares para beneficiar ex-presidentes. À época, o governo gaúcho buscava uma forma de auxiliar o ex-governador Ildo Meneghetti, atormentado por dificuldades financeiras. A maioria dos governos estaduais adotou medidas semelhantes.
O benefício para ex-presidentes caiu em 1988, com a Constituição Cidadã. Alguns Estados tomaram o mesmo rumo e cancelaram a benesse para novos mandatários, mas 11 pagam até hoje - incluindo o Rio Grande do Sul. Levantamento feito pelo jornal O Globo em dezembro mostrou que 157 ex-governadores e primeiras damas ainda recebem pensões vitalícias no país.
- É um pagamento que sangra diretamente o Tesouro, pois não há previsão de fonte no regime previdenciário nem contribuição do futuro beneficiário - aponta o advogado Roberto de Carvalho Santos, presidente do Instituto de Estudos Previdenciários (Ieprev).
Ou seja, diferente do cidadão comum, que precisa contribuir por 35 anos para obter uma pensão do INSS, governadores gaúchos não precisam desembolsar um centavo para ter direito a uma pensão.
As tentativas de derrubar o benefício esbarram na morosidade da Justiça ou no desinteresse do Legislativo. Pelo menos sete ações diretas de inconstitucionalidade, movidas por ordens de advogados e Ministérios Públicos Estaduais, aguardam julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Em geral, tomam como base a emenda constitucional 20, de 1998, que vedou o pagamento de subsídios ou aposentadorias especiais a ex-servidores públicos. A norma determinou que a pensão destes deve ocorrer pelo regime geral da Previdência.
- Esse benefício viola os princípios constitucionais. Além de passar longe de ser republicano, dada a situação financeira do Estado - afirma Marcelo Machado Bertoluci, presidente da seção gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), uma das entidades que contestam o pagamento no STF.
Na Assembleia Legislativa, tentativas de derrubar a lei foram engavetadas. Em 2007, o ex-deputado Luciano Azevedo (PPS) protocolou um projeto para extinguir o benefício que tramitou por três anos até ser barrado pela Comissão de Constituição e Justiça. A proposta voltou a ser discutida, mas acabou arquivada em 2013.
- Não consegui apoio para fazer o projeto avançar. Parece que ainda impera entre alguns deputados a sensação de que os políticos merecem privilégios - diz Azevedo, hoje prefeito de Passo Fundo.
No início de fevereiro, dois deputados recém empossados apresentaram projetos para suspender ou restringir o benefício, Any Ortiz (PPS) e Juliano Roso (PC do B).