
Morto nesta quinta-feira aos 58 anos, o jornalista americano David Carr cobriu por 25 anos a indústria de mídia nos Estados Unidos. Colunista do jornal New York Times, ele monitorou a crise enfrentada pelo setor desde que a perda de leitores para a internet se juntou à crise financeira de 2008. Carr também foi o astro do filme Page One (2011), que ilustra a rotina no NYT.
Em 2012, em São Paulo, ele participou do 7º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Concedeu esta entrevista à ZH e mostrou otimismo com o jornalismo, apesar da crise:
Zero Hora - O senhor vem cobrindo a crise nos jornais americanos há anos. No que esse momento difere de outras mudanças ocorridas nos jornais ao longo do século 20, quando tiveram a concorrência de novas mídias, como o rádio e a TV?
David Carr - Parece que muita coisa mudou, não só o comportamento dos anunciantes, mas também do público. Afeta tanto a circulação quanto as receitas. O conteúdo da web dobra a cada ano, então a quantidade de conteúdo que temos de produzir é cada vez maior. Parece ser algo diferente de apenas mais uma crise. É um tipo de crise existencial, que muda os fundamentos.
Essa "crise existencial" põe o jornalismo em perigo?
Nunca houve uma época melhor para fazer jornalismo. Temos, agora, ferramentas. Se você quisesse fazer um vídeo com esse tablet, seria possível. Se quisesse gravar, poderia colocar o áudio online. Se eu disser algo que você não acredita, você pode conferir na internet enquanto fala comigo. Então, como um praticante do jornalismo, nunca foi melhor. O problema é que o modelo de negócio que sempre bancou o jornalismo parece estar sumindo, e temos de achar novos modelos, que provavelmente incluam receber mais dinheiro diretamente dos consumidores para sustentar alguns tipos de reportagem.
Por exemplo?
Às vezes, fazer jornalismo não é um bom negócio em termos financeiros. Reportagens investigativas não dão lucros. Coberturas internacionais também não, mas são importantes para o bem comum, são um dever cívico. Essas coisas vieram de épocas quando os jornais, nos EUA, tinham tantos recursos que não sabiam onde colocá-los, então começaram a contratar pessoas como vocês e eu e pedir para descobrir aquelas grandes histórias. Agora, muitos jornais têm de optar entre investir numa grande pauta investigativa ou cobrir um jogo de futebol. Se tornou um jogo de soma zero.
Muitos acreditam que investigar e fazer reportagens de fundo é algo fundamental para manter a importância junto aos leitores.
Você não pode simplesmente fazer o conteúdo básico, aquele que virou commodity e todos têm. Precisa de enterprise reporting (reportagem empreendedora), de algo que o destaque dos demais. Mas o leitor não se importa mais tanto de onde vem o conteúdo - se de um jornal, um site ou até uma propaganda -, desde que seja útil. Então, temos de ser relevantes o tempo inteiro, cada vez mais. Estamos em uma briga de cão pela atenção deles.
O New York Times implantou um sistema de cobrança pelo qual os leitores podem ler um certo número de notícias por mês. Para ler além, têm de pagar. Está dando certo?
A leitura não está caindo, pelo contrário. Ainda estamos bastante visíveis no Twitter e temos bastante tráfego vindo das mídias sociais. Nos preocupamos, antes da implantação, que poderíamos perder leitura, mas não aconteceu. Não acho que perdemos relevância ou visibilidade.
Teremos um nível diferente de reportagem?
Você vai cavar a grande história, trabalhar com os infografistas para que ela se apresente bem e também precisar que comente em vídeo e coloque o áudio da entrevista. Por que não disponibilizar a cópia dos documentos que você usou para embasá-la? Poste a reportagem no Twitter e no Facebook e, se tiver acesso ao rádio, também será bom colocá-la por ali. Temos de descobrir como nos clonar, para sermos capazes de fazer tudo isso (risos).
Qual o papel dos tablets na reinvenção dos jornais?
Eles são nossos amigos, mas a Newscorp criou um jornal apenas para tablet e não deu certo. Parte da questão é que, se você desliga o tablet, não consegue ver o jornal. (Pega o tablet do repórter) Onde ele está? Se foi. Não está ali, parado, sugerindo a você o que ler. Coisas que estão ali, disponíveis, ficam incomodando, até que a gente para e diz "tenho de ler isso". Um aplicativo puramente para tablet normalmente não se integra bem com o ecossistema de links do Twitter ou do Facebook, mas é um grande equipamento de leitura. Meu problema com isso é o seguinte: no New York Times, a seção de notícias Internacionais vem primeiro. Então eu a leio. Se estou no iPad, nunca chego nem perto. Porque no jornal há uma hierarquia e, se eu fosse escolher, só escolheria outras coisas, nunca a Internacional. Parece que, nesses casos, as notícias sérias sempre perdem a disputa com outras, mais leves.
Nos EUA, alguns jornais passam por sérias dificuldades. O que fizeram de errado?
Esperaram como bois para serem abatidos. A diferença é que o Brasil é um país em crescimento, que vê novos consumidores chegando com a melhora da economia, e os jornais têm uma penetração bem menor que nos Estados Unidos. Vocês não precisam cometer os mesmos erros que cometemos. Vocês têm mais tempo. É como a indústria do cinema: eles têm mais tempo do que nós tivemos, porque nosso negócio é texto, que é fácil de copiar e repassar pela web. O pecado original foi dar conteúdo de graça. Pensamos que conseguiríamos nos sustentar facilmente. "Olhe toda essa gente na internet, isso tem de ser um bom negócio". Mas não foi.
Era a visão de todos em relação à internet há 10 anos, de que tudo deveria ser de graça.
Sim, era a minha visão também. Eu trabalhei em uma empresa pontocom e disse: "Tudo mudou". Mas nada mudou. Você precisa de dois fluxos de receita: um vindo dos consumidores, dos leitores, e outro vindo da publicidade.
Agora que estão pagando por algo a que não estavam acostumados, os leitores vão cobrar mais qualidade?
Sim, e Jay Rosen, que é um professor americano, os chama de "aquelas pessoas que anteriormente conhecíamos como a audiência". Eles não são mais a audiência, eles se voltaram contra nós. Você diz algo, e eles vêm de trás das colinas atirando em nós: ratatátátáá (risos).
Por que existir bom jornalismo é importante para a democracia?
Bom jornalismo cria luz do sol, transparência e responsabilização, todos esse ingredientes fundamentais para criar e manter uma democracia.