O Brasil demorou quase três décadas para inventariar os crimes da ditadura militar - tempo suficiente para que testemunhas morressem, documentos fossem escondidos e parte da memória se perdesse. Largou tarde, ao contrário dos vizinhos Chile, Argentina e Uruguai, que se apressaram em exumar os seus porões assim que os generais deixaram o poder.
Rusgas internas também truncaram os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), notadamente na fase inicial. Mas o resultado do relatório apresentado ontem, num calhamaço de 4,4 mil páginas - o qual poderia ter uma edição paralela, compacta e de fácil consulta -, compensou os dois anos e sete meses de investigações. É um documento à posteridade. Um serviço à história do país pelas contribuições que traz.
Baixe o relatório na íntegra do site da Comissão da Verdade
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E quais os avanços obtidos pela CNV? Pode-se começar pela lista que aponta 377 repressores, entre militares, policiais, agentes e os colaboradores de sempre. Vários são conhecidos, como os gaúchos Pedro Seelig (ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops) e o major Átila Rohrsetzer, do Centro de Informações do Exército (CIE), os maestros do que ocorreu no Rio Grande do Sul. Estão vivos, não se manifestam. Já foram citados antes, mas agora existe a recomendação oficial para que sejam responsabilizados.
A CNV não apenas nominou, ouviu repressores. O mais estremecedor dos depoimentos foi o do coronel Paulo Malhães, que atuou no Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), no Rio de Janeiro. E na famigerada Casa da Morte fluminense, local clandestino de torturas e base para a chamada solução final (matar e ocultar o cadáver).
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Quem era levado à Casa da Morte perdia a esperança de sobreviver. Em fevereiro, falando à Comissão Estadual da Verdade (CEV) do Rio, Malhães contou a finalidade de interrogar num lugar ignorado. Numa unidade militar, o prisioneiro político achava que estaria seguro, por ter sido registrado. Na clandestinidade, ficava ao desamparo. O relato do coronel sobre como infundia pavor às vítimas:
- Você já viu que você está preso, mas não está preso no quartel. Você está preso em uma casa. Daqui você pode ir para qualquer lugar. Aqui você não está inscrito em nada.
A comissão também preencheu vazios - não todos - no intrincado quebra-cabeças em que se transformou a morte do então deputado federal Rubens Paiva, assassinado sob tortura nas dependências do DOI-Codi do Rio. Identificou que o órgão era comandado pelo general José Antônio Nogueira Belham. Ele foi ouvido, mas negou o crime, justificando que estava em férias quando o corpo Paiva desapareceu, em 1971.
Esperava-se que a CNV pudesse ir mais longe, até porque tinha por referência o relatório Nunca Mais, produzido na década de 1980 pela Arquidiocese de São Paulo, sob a liderança de dom Paulo Evaristo Arns, e que serviu de inspiração a outros países. Não foi, ficou devendo. Em plena democracia, não pôde romper o silêncio das Forças Armadas, que se negaram a esclarecer episódios nebulosos, comportando-se como se estivessem em pleno regime militar.
Talvez a maior frustração tenha sido não descobrir as ossadas dos que tombaram na guerrilha do Araguaia (região na divisa entre Pará, Goiás e Maranhão). Apesar do esforço da CNV, um clamor ainda inquieta os familiares das vítimas: onde foi que enterraram nossos mortos?
BALANÇO DAS AÇÕES
No que avançou
- Ampliou para 421 a lista de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985). O obituário anterior, elaborado em 1995, era de 366 vítimas
- Identificou 377 militares, policiais, agentes e colaboradores ligados ao aparato repressivo. Treze deles são gaúchos ou atuaram aqui
- Ouviu revelações de torturadores, como as do coronel Paulo Malhães, do Rio de Janeiro
- Lançou luzes sobre o desaparecimento do então deputado federal Rubens Paiva, ocorrido em 1971, na sede do DOI-Codi do Rio de Janeiro
- Aportou detalhes sobre a cadeia de mando da repressão, desde o gabinete do presidente da República até os porões de interrogatório. Provou que as torturas e os assassinatos não podem ser atribuídos somente a excessos por parte de alguns repressores
- Deixa uma base de documentos, depoimentos e análises que servirão para a continuidade das investigações
No que trancou
- Não conseguiu romper a barreira de silêncio imposta pelas Forças Armadas, cujo comando se negou a prestar informações
- Não conseguiu localizar os restos mortais dos que participaram da Guerrilha do Araguaia (1967-1974). Haveria 70 desaparecidos, entre guerrilheiros e seus colaboradores na região
- Não pôde localizar os restos mortais de seis guerrilheiros - entre eles o argentino Enrique Ernesto Ruggia -, emboscados e sepultados clandestinamente no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, em 1974
- Trouxe informações, mas não conseguiu achar os restos mortais dos brasileiros eliminados na Argentina e no Chile em função da Operação Condor (a aliança secreta entre as ditaduras do Cone Sul)
- Também não avançou no destino dos seis argentinos sequestrados no Brasil, vítimas da Operação Condor. Todos desapareceram.
Em um minuto, entenda o que significa o relatório da Comissão da Verdade
*Zero Hora